por João Peres — publicado 25/11/2017 01h00, última modificação 24/11/2017 10h17
Grandes empresas emplacam indicações para assentos que cabem a faculdades e institutos de pesquisa na agência reguladora, que opta pelo silêncio
A indústria de alimentos tem ocupado assentos que caberiam a universidades e institutos de pesquisa em colegiados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Embora disponham de lugares próprios, as empresas contam ainda com pesquisadores alinhados, conseguindo influenciar na definição da agenda e das normas da agência reguladora.
O setor econômico chega a ter maioria em alguns espaços, em especial nos grupos de trabalho que fornecem subsídios à formulação de políticas públicas.
O principal representante da indústria nos assentos da comunidade acadêmica é o International Life Sciences Institute (ILSI), criado em 1978 pela Coca-Cola. “O ILSI Internacional e o ILSI Brasil acreditam que o fórum científico é um fórum neutro e é o único que pode dar respostas seguras para uma população que necessita de uma contribuição científica”, defende o diretor-presidente do ILSI, Ary Bucione.
Muitas vezes, o ILSI não está oficialmente na composição dos grupos, mas professores de universidades públicas falam em nome do instituto, como pudemos comprovar ao ler vários documentos.
Revisamos mais de uma centena de atas de reuniões de grupos de trabalho na Anvisa. Entrevistamos dezenas de envolvidos no processo. Lemos o material científico apresentado por pesquisadores e diretamente pela indústria para embasar a tomada de decisão. E não encontramos nenhuma divergência relevante entre as posições das empresas de alimentos e do ILSI. E também de alguns professores com trabalhos financiados pelo setor privado. Ao contrário, a convergência é constante.
O congresso anual da organização contou em 2017 com a participação de um diretor da Anvisa pela primeira vez. Fernando Mendes Garcia Neto criticou “modismos alimentares” que, segundo ele, prejudicam a saúde da população, fazendo eco ao escopo argumentativo da indústria. Ele falou em “um mínimo de ordenamento regulatório que possa seguir em alinhamento com a evolução tecnológica desses produtos de forma a permitir, no menor tempo possível, a comercialização deles em situação que garanta eficácia e segurança no uso”.
O ILSI e outras organizações próximas à indústria têm trabalhado para agilizar processos dentro da Anvisa, especialmente no que diz respeito a novos produtos. Como a indústria investe forte em inovação, está sempre alguns passos à frente da agenda regulatória e da pesquisa acadêmica.
Sempre que se pronuncia publicamente, Bucione enfatiza que o ILSI é uma organização científica. Em algumas reuniões da Anvisa, o instituto se faz representar por funcionários de empresas, inclusive Bucione, empregado da DuPont, fabricante de ingredientes fornecidos à indústria de alimentos.
Aldo Baccarin, ex-Kraft Foods e presidente do ILSI de 2001 a 2015, representou o instituto no em um grupo de trabalho sobre alimentos funcionais. “O ILSI é uma organização abstrata”, diz Baccarin, antes de um raro momento de silêncio durante a mais de uma hora de conversa realizada em agosto. “Sim, a gente manda quem tem o melhor nível de conhecimento, e sempre vão assessorados por alguém da ciência. Eles têm que tomar muito cuidado para, se ficar em qualquer momento claro que há um conflito de interesses, essas pessoas têm que se abster e pular fora.”
O GT foi formado pela Comissão Técnico-Científica de Assessoramento em Alimentos Funcionais e Novos Alimentos, instalada em 1999, mesmo ano de criação da Anvisa. O grupo é desde sempre dominado pelo ILSI.
No grupo de trabalho aberto em 2013, a organização contou com dois assentos diretos. E ainda teve direito a mais duas cadeiras reservadas à academia: Hélio Vannucchi, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, e o Franco Lajolo, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e atual presidente do Comitê Científico do ILSI.
Lajolo chegou a pedir durante as reuniões que margarinas, sopas prontas e chocolates pudessem receber alegações de benefícios à saúde. Ele é coproprietário de duas patentes. Uma, de 2007, sobre a farinha de banana verde, um alimento funcional. E outra, de 2011, financiada pela Sadia, que justamente tenta promover o prato pronto congelado como algo benéfico à saúde. No grupo de trabalho, a Anvisa adotou, porém, as alegações funcionais como exceção, e não como regra, fechando a porta para que ultraprocessados ou alimentos de baixo valor nutricional pudessem receber selinhos de “bons para a saúde”.
“Tradicionalmente, na Anvisa, os grupos ligados à indústria estão presentes. Não faltam. Têm um comprometimento com esses eventos que é de outro planeta”, resume Rafael Claro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, que participou do grupo de trabalho sobre alimentos funcionais.
Na Anvisa, a indústria dá as cartas Alguns entrevistados consideram que o problema está na forma como são feitas as indicações. Os GTs da Anvisa seguem uma fórmula previsível. A sociedade civil se opõe à indústria. A indústria se opõe a qualquer regulação. E os integrantes da academia são o fiel da balança, ou seja, conseguir nomear alguém no mínimo simpático a suas ideias pode desequilibrar o jogo.
“Se a Anvisa fizer um código mais rígido, e fulano recebeu financiamento de determinada empresa, ele não vai falar como universidade: vai falar como empresa”, sugere Claro.
Em alguns grupos, a indústria conta ainda com a simpatia de institutos públicos de pesquisa. É o caso especialmente do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), um órgão do governo paulista vinculado à Agência Paulista dos Agronegócios. A própria missão institucional do Ital é estar a serviço da indústria. Hoje, para citar dois exemplos, o órgão rechaça a nomenclatura “ultraprocessados” para descrever alguns tipos de alimentos e alega que a obesidade é causada por hábitos pessoais.
A fórmula não é secreta
Em um encontro recente do Grupo de Trabalho de Nutrição e Alimentos para Fins Especiais, realizado no começo de julho, em São Paulo, a presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), que, na verdade, estava inscrita como integrante da Unifesp, demonstrava certa impaciência com os pormenores da discussão sobre a rotulagem de fórmulas infantis para crianças maiores de um ano. Os detalhes são justamente o motivo de ser do grupo, que atua desde 2010 discutindo as normas internacionais nessa área, um trabalho que pode custar horas em torno de uma palavra ou uma frase.
“Antigamente, tinha uma fórmula só. E ninguém morreu por causa disso. Eu fui criada com Leite Ninho”, disse Olga Amâncio, presidente da Sban, uma organização parceira do ILSI que vem recebendo críticas pelas relações com as grandes empresas de alimentos. Recentemente, a Sban promoveu vídeos nas redes sociais em defesa do leite de vaca e teve a Nestlé como maior patrocinadora de um congresso.
Na Anvisa, Amâncio discordou da necessidade de informar no rótulo que aquele alimento é complementar à dieta e não um substituto, pois considera por óbvio que ninguém dará fórmula a um bebê durante o dia inteiro, uma interpretação que provocou certo mal-estar entre as defensoras do aleitamento materno.
No fim de outubro, durante audiência pública na Câmara, a Sban apresentou-se contra a criação de um imposto especial sobre os refrigerantes. A representante da entidade, Marcia Terra, afirmou que, embora não se tenha até o momento fechado posição em torno do assunto, as evidências científicas iriam no sentido de mostrar que a medida é pouco eficaz.
Dias depois, ela, em nome da Sban, e pesquisadores do Ital estiveram em evento da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) para defender o modelo de rotulagem frontal proposto pelo setor privado. O tema é central nos debates atuais da Anvisa, que até o momento não se decidiu entre o sistema defendido pela sociedade civil e o advogado pelas empresas.
Marcia Vitolo, professora aposentada da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, integrou o GT sobre fórmulas infantis nos últimos anos. Ela não tem dúvidas de que a forma como são estruturados os grupos da Anvisa é o cerne da questão. “Em cada reunião, vai um grupo diferente. Essa descontinuidade faz com que o processo fique vulnerável, o que é de interesse maior da indústria”, resume. “Porque a indústria tem uma continuidade. Os profissionais técnicos, acadêmicos, que vão de alguma forma tentar dar o olhar da população, estão abarrotados de coisas.”
O GT do qual fez parte Marcia Vitolo atua numa questão muito delicada. As fórmulas infantis são o tópico que fez saltar à vista como a influência da indústria pode minar os conhecimentos científicos, resultando em décadas de desinformação das mães sobre os benefícios do aleitamento materno.
Embora a indústria hoje admita que nada é melhor do que o leite natural, ainda há um forte jogo de pressão nessa seara, que pode ser facilmente reconhecido nas atas da reunião, com sucessivas tentativas de evitar qualquer restrição a esses produtos. O ILSI se opôs a que se adotasse a inscrição “Não nutricionalmente necessário” nos rótulos das fórmulas para bebês acima de 12 meses, tese defendida por parte da comunidade acadêmica e pela sociedade civil.
“O conflito de interesses às vezes é muito velado”, resume Renata Monteiro, pesquisadora do Observatório de Políticas de Saúde Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília que participou de grupos de trabalho na Anvisa e no Ministério da Saúde. “Eu sou uma profissional de saúde, então, quando sou chamada a um espaço assim, sei exatamente qual é meu papel. Quando se trata de um acadêmico mais próximo à indústria, é mais difícil. Porque não está tentando discutir a questão da ciência: está para intermediar a indústria com a questão acadêmica, tentar criar argumentação acadêmica para justificar algumas coisas que a indústria quer fazer.”
No começo de 2017, o setor produtivo apresentou ao GT dois artigos de revisão que deveriam ser tomados como material de referência, dada a escassa bibliografia brasileira sobre o tema. Um deles era assinado por professores de universidades federais em parceria com um funcionário da Danone.
Portas abertas
Em 2003, o ILSI opôs-se à colocação de alerta sobre rotulagem de alimentos com glúten, alegando que a mensagem provocaria confusão. Recentemente, fez oposição à resolução da Anvisa sobre rotulagem de alimentos com potencial alergênico. “O ILSI faz ciência com evidência. Então, enquanto não tiver evidência, a gente não apoia ações que são simplesmente questionamentos, sem a avaliação do risco, que é o necessário para esse caso”, resumiu Maria Cecília de Figueiredo Toledo, professora aposentada da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.
A Anvisa adotou no ano passado uma norma interna sobre conflito de interesses, adequando-se à também recente legislação federal sobre o tema. Tanto a regra quanto a lei vão em mão única, dizendo apenas o que cabe ao servidor público e não a quem se relaciona com o poder público. Buscamos saber se o Comitê de Ética da agência reguladora ou a diretoria colegiada tomam atitudes quanto a essa questão, mas a assessoria de imprensa optou por vetar entrevistas e não enviar qualquer resposta, mesmo com pedidos reiterados desde o começo de agosto.
As resoluções da Anvisa seguem um rito. Primeiro, é preciso que o assunto entre na lista de prioridades de regulação. Depois, que comece a ser debatido. Em seguida, edita-se uma proposta de resolução, ou seja, um esboço da norma, que é submetido a uma consulta pública e recebe contribuições dos interessados. O ILSI é assíduo em todas essas etapas.
Há vários assuntos em discussão que despertam o interesse do instituto.
A Anvisa está definindo novas normas para que um alimento possa ser considerado integral. O ILSI organizou dois eventos a respeito em agosto e setembro.
Uma nova regulação para suplementos alimentares, de forma a tornar mais rápida a liberação de produtos, teve debates promovidos pelo instituto, que também se envolveu em uma discussão parecida quanto a probióticos, que são alimentos ou medicamentos usados para melhorar a composição da microbiota intestinal (vulgo flora). Ao que tudo indica, a Anvisa caminha para dar “maior flexibilidade” à liberação de produtos, adotando o modelo canadense apresentado justamente por acadêmicos próximos à indústria e por uma consultoria parceira do ILSI.
Os materiais do instituto sobre macro e micronutrientes constituem a base de referências da Anvisa. Há integrantes do ILSI que reservaram para si há muitos anos o único assento da comunidade acadêmica na delegação brasileira para o Codex Alimentarius, espaço de definição das normas globais sobre alimentação e comércio.
A tentativa do setor privado de ocupar espaços acadêmicos não é um fenômeno brasileiro. A organização não governamental US Right to Know revelou recentemente uma troca de e-mails entre dois ex-executivos da Coca-Cola. Alex Malaspina, fundador do ILSI e ainda influente na organização, e Ernest Knowles, ex-vice-presidente de relações institucionais da Coca, demonstravam preocupação com os rumos do debate sobre obesidade. Knowles sugere que a empresa deveria estar à frente dessa discussão, financiando organizações médicas e científicas e fortalecendo a ação do ILSI na busca pelas causas dessa epidemia.
O Observatório de Corporações da Europa publicou em 2012 um documento mostrando que o ILSI teve portas abertas no órgão regulador da alimentação no continente, o EFSA. O próprio ILSI admite ter conseguido enfraquecer as linhas de atuação do órgão público em relação a transgênicos, com a dispensa de testes mais profundos sobre como a alteração genética pode mexer com vários componentes nutricionais.
No geral, conclui o Observatório, é esse o papel do instituto: atuar por regras mais brandas que signifiquem economia milionária (ou bilionária) para as empresas patrocinadoras. Depois de várias evidências de que o ILSI dava as cartas em decisões importantes do órgão regulador, a EFSA adotou um novo padrão de relacionamento e decidiu excluir o think tank da tomada de certas decisões. Diante dos protestos do ILSI, a então diretora-executiva da EFSA, Catherine Geslain-Lanéelle, escreveu uma carta na qual fala que a organização representa “interesses particulares” e que a agência está “muito bem posicionada para saber a natureza de seu trabalho”.
Por aqui, a Anvisa optou pelo silêncio.