29 de maio de 2017, 6h15
Por Luciano Benetti Timm
Houve um tempo em que o preço dos medicamentos era tabelado pelo governo federal. Com efeito, até os anos 90 do século XX, o Conselho Interministerial de Preços (CIP) fixava os preços dos medicamentos tendo como base a tabela de custos das empresas. Tal modelo “regulatório” detinha inúmeras falhas, a começar pela assimetria de informações em relação ao funcionamento do mercado de medicamentos e sobretudo pela ausência de base de dados confiável sobre formação do custo de produção da industria.
Foi durante o governo Collor que esse sistema foi abandonado devido a suas ineficiências. O mercado de medicamentos seguiu, portanto, a política governamental de desregulação de vários outros setores empresariais com vistas à modernização do país e de seu parque fabril. Nesse período, a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) apenas monitorou os preços, sem intervenção ou regulação direta.
Uma vez que o governo federal, por meio da SEAE, identificou aumento substancial no preço dos medicamentos e que o direito antitruste não estava sendo suficiente para garantir pouca oscilação de preços, optou-se por novamente regular o preço dos medicamentos, mas agora dentro de modelos consagrados na experiência internacional, inclusive de alguns países europeus.
Nesse sentido, foi então criada, em 2001, no âmbito da Anvisa, a Câmara de Medicamentos (Camed), que estabeleceu uma Fórmula Paramétrica de Reajuste de Preços dos Medicamentos (FPR), ou seja, uma formula matemática de reajuste de preços, baseada, fundamentalmente, no histórico de evolução de preços (EMP) e uma parametrização de preços dos medicamentos (IPM). Nesse modelo regulatório, essencialmente, o preço seria controlado não com base em planilha de custos, como em tempos passados – e mal sucedidos, diga-se de passagem – mas embasado em faturamento das empresas e calculando uma taxa interna de retorno [1].
Em seguida, em 2003, essa fórmula foi alterada para incorporar os ganhos de produtividade do setor no preço dos medicamentos, estabelecendo-se um price cap (um teto de preço), calculado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), conforme previsto pela Lei 10742/2003, que substituiu a Camed.
A Camed funciona no âmbito da Anvisa, a qual, segundo seu próprio site, “monitora os preços dos medicamentos que estão no mercado e auxilia tecnicamente no estabelecimento do preço de novos medicamentos.” Além disso, sua página na internet nos deixa saber que “uma de suas atribuições é exercer a função de Secretaria Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial responsável por regular o mercado e estabelecer critérios para a definição e o ajuste de preços”. [2]
Já a Lei 10742, estabelece que “fica criada a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos – CMED, do Conselho de Governo, que tem por objetivos a adoção, implementação e coordenação de atividades relativas à regulação econômica do mercado de medicamentos, voltados a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta de medicamentos e a competitividade do setor.”
Portanto, não há dúvidas de que há regulação no preço dos medicamentos no Brasil e que ele é exercido pela CMED conforme parâmetros matemáticos, de acordo com critérios definidos em lei.
O que vem ocorrendo em nossa prática judicial é mais uma forma de judicialização da saúde, que tanto prejuízo já causou ao mercado de planos de saúde causando um desarranjo e desorganização do setor.
Tratam-se de ações movidas pelo Ministério Público e por entidades governamentais querendo que o poder judiciário estabeleça o preço dos medicamentos, mas, naturalmente que não acordo com critérios matemáticos mundialmente reconhecidos e adotados em nosso modelo regulatório, mas seguindo “conta de padeiro” e valendo-se da conhecida dogmática constitucional da “ponderação de princípios” de qualquer direito frente ao “direito fundamental à saúde”.
Mas uma coisa é o Judiciário — que, como dito, já causou alguma confusão nos planos de saúde — determinar o fornecimento de um medicamento pelo estado, mesmo que não haja recursos orçamentários em nome do “direito fundamental à saúde”, outra coisa é interferir na livre iniciativa das empresas, que também é um princípio constitucional. Violaria por demais à livre iniciativa obrigar uma entidade de direito privado fornecer seus produtos a um determinado preço que não esteja de acordo com a legislação do país. Além de violar a livre iniciativa, afronta mortalmente a segurança jurídica.
Se o Judiciário entrar na onda do Ministério Público e de estados da federação que estão judicializando o tema e começar a determinar o fornecimento de medicamentos a preços definidos em liminar, conforme critérios matemáticos pouco consistentes, teremos uma volta ao passado e estaremos renunciando aos 30 anos de evolução de nosso modelo regulatório. Sem falar da avalanche de processos que já assola o mesmo poder judiciário.
1Conforme estudo da Consultora Legislativa do Congresso Nacional, Luciana Teixeira, intitulado Reajuste de Preços Administrados no Setor da Saúde, http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-conle/tema10/2005_7377.pdf , acessado em 10/05/2017.
2 http://portal.anvisa.gov.br/cmed/apresentacao.
Luciano Benetti Timm é advogado, doutor em Direito e presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia.
Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2017, 6h15