Ministério da Saúde aponta que mais de 50% das prescrições e uso de remédios são incorretos; desinformação e manias culturais alimentam o problema
Nélson Gonçalves
A sociedade vive em constante estado de ansiedade, tensão, pressão, correria e, com isso, os cidadãos estão consumindo cada vez mais, indiscriminadamente, remédios em geral. Relatório do Ministério da Saúde em estudo específico sobre o uso racional de medicamentos aponta, logo na primeira frase, que mais de 50% de todos os medicamentos são incorretamente prescritos e mais de 50% usados de forma indevida pela população.
Em Bauru, somente o serviço de distribuição gratuita de drogas, da assistência municipal de saúde, consome mais de cinco milhões de comprimidos por mês. E esse dado vale apenas para os 15 mais utilizados e os 10 mais caros. Juntos, só este estoque dos mais utilizados gera gasto de R$ 1,5 milhão pela prefeitura ou R$ 18 milhões anuais.
Para o professor de farmácia da Universidade do Sagrado Coração (USC) Alexandre Bechara, os dados revelam o "doping inconsciente associado à desinformação e manias culturais". Para a diretora da Divisão de Assistência Farmacêutica da Secretaria Municipal de Saúde, Jussemi Biazon Daltin, o contexto é "muito preocupante e reflete o uso indiscriminado". O fato é que, aparentemente de forma silenciosa, é devastador a forma como o uso sem critério de drogas lícitas está ajudando a agravar problemas de saúde e consolidando uma legião de dependentes químicos com amparo da lei.
No relatório sobre o uso racional de medicamentos, Lenita Wannmacher, do Ministério da Saúde, relaciona que no Brasil a utilização incorreta de medicamentos deve-se à prática da chamada polifarmácia.
"Uso indiscriminado de antibióticos, prescrição não orientada, automedicação inapropriada e desmedido armamentário terapêutico disponibilizado comercialmente", descreve. A avaliação objetiva é de que o uso abusivo ou inadequado de medicamentos lesa a população e desperdiça os recursos públicos. O contrário disso é o uso racional de medicamentos, o que inclui a necessidade do paciente receber o medicamento apropriado, na dose correta e por período adequado.
EDUCAÇÃO
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), menciona o estudo, a reversão desse quadro exige adoção de política pública educativa, desde a fase inicial de ensino, e de disseminação de campanhas através dos usuários do sistema de saúde, incluindo os profissionais. Para Roberson Moron, médico e presidente da Unimed em Bauru, a cultura de consumo ainda deve cuidar do conteúdo no aprendizado da formação dos profissionais, sejam médicos, farmacêuticos ou auxiliares.
O médico Carlos Alberto Monte Gobbo, do Conselho Regional de Medicina (CRM), vê evolução entre os remédios de uso controlado. "Hoje, os mecanismos são mais eficientes para os medicamentos de uso controlado, que exigem receita como os antibióticos. Há controle absoluto por receita. Mesmo as manias de uso de medicamento ligadas ao emagrecimento, antidepressivos ou ansiolíticos contam com controle. O grande problema é a cultura de uso das drogas comuns, analgésicos e relaxantes musculares. Desinformação é um perigo associado ao uso indiscriminado e em escala", ressalta.
Gobbo também aponta para o estoque de sobras. "Nos EUA, a receita tem controle também de quantidade. No Brasil há muita sobra de remédios. Os laboratórios vendem em quantidades acima do necessário para boa parte dos casos. E esse estoque caseiro virou outro perigo. As pessoas não só recorrem às sobras como costumam utilizar sem critério, sem observar a indicação e a validade. A regulamentação tem de atentar para a quantidade, as dosagens. Isso significa desperdício, estímulo ao uso indevido, prejuízo ao usuário que gasta mais e faturamento para os laboratórios", adverte.
Distorções provocam efeitos em cascata
A diretora da Divisão de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Saúde, Jussemi Biazon Daltin, comenta que a lista dos medicamentos mais distribuídos na rede municipal e os de maior custo ratificam o uso indiscriminado e dão sinais claros de como a desinformação multiplica os riscos.
"O omeprazol no topo da lista dos mais distribuídos é uma distorção de uso claríssima. Em geral, esta quantidade de 415 mil comprimidos distribuídos por mês está ligada ao uso pra azia, a popular queimação no estômago. O pior é que boa parte tem uso ainda mais incorreto na forma. Ou seja, ingerem a droga com o estômago cheio. A orientação é para ingestão em jejum e 30 minutos antes. Ele é um inibidor de prótons, que faz a produção do suco gástrico. De indicação ligada à úlcera e gastrite, o omeprazol vem sendo usado em escala e isso é muito ruim. A lista não incluiu o diclofenaco entre os 15 mais, mas a quantidade ligada a uso indevido é absurda. São 55 mil comprimidos/mês desse anti-inflamatório e 82 mil comprimidos do ibuprofeno. É alarmante", observa.
Carlos Alberto Gobbo considera o omeprazol como grave. "Passou a ser utilizado de forma corriqueira. E tem uma turma que usa ligado a refluxo com obesidade. E a saída para esse caso não é o omeprazol. Mas virou um problema. Vivemos em uma sociedade geradora de ansiedade. E isso afeta os hábitos, afeta o sono, o humor. E lá estão os antidepressivos utilizados em escala, os analgésicos como se fossem doces. Usam relaxante muscular ligado a álcool depois de atividade física. É um horror de comportamento inadequado", referenda o médico.
Jussemi ainda chama a atenção para a cascata iatrogênica. "Isso é muito comum em idosos. Eles usam um novo medicamento para corrigir o efeito colateral do anterior. E acumula uma escala, gerando o efeito polifarmácia. E fica um mix de remédios sendo tomados de forma sequencial", comenta.
Outra advertência: comunicação ou a falta dela. "O paciente tem medo de falar com o médico. É preciso acabar com isso. Outro contingente tem medo de falar o que toma, esconde do médico. Outros pegam na gôndola a caminho do caixa, como se fosse supermercado. A disposição de farmácias com prateleiras como se fossem alimentos é outro grande problema. Diferenciar, então, remédio de referência, de similar ou genérico é dificuldade ainda maior. Não perguntam, não dialogam, não indagam ao médico o que está sendo prescrito e não discutem efeitos colaterais", finaliza Jussemi, que acumula mais de 20 anos de experiência na área.
Semana foca proveito racional
O vereador Fábio Manfrinato é autor de projeto de lei para instituir a Semana do Uso Racional de Medicamentos em Bauru, indicando o período de 5 a 11 de maio para a realização de ações que discutam o comportamento, a orientação, estudos e campanhas de conscientização contra a automedicação e pelo uso adequado de drogas. "Os medicamentos são produtos preparados para auxiliar a manutenção da saúde em caso de necessidade. Mas o uso incorreto pode levar a uma série de problemas e até a morte. O uso racional é fundamental para garantir que o medicamento tenha os efeitos desejados", destaca na proposta. Ele destaca, também, o previsto na lei federal 13.021/2014. "O farmacêutico e o proprietário do estabelecimento devem agir solidariamente, realizando todos os esforços para promover o uso racional de medicamentos. A mesma norma obriga o farmacêutico a prestar orientação, esclarecendo o paciente sobre riscos, benefícios, efeitos colaterais, adequação e conservação do medicamento", acrescenta.
Farmacêutica e bioquímica, representante do Conselho Regional de Farmácia, Maria Benedita Esgotti, apoia a iniciativa. "Há uma série de ações, campanhas e políticas públicas, que precisam ser disseminadas para mudar o quadro da automedicação e do uso irracional de medicamentos. Há absurdos de comportamento que precisam ser combatidos. De outro lado, a lei federal 13.021/2014 consolida a farmácia como unidade prestadora de serviços e não como comércio e põe o farmacêutico como profissional habilitado para orientação, aquele que dá suporte para essa relação com o usuário do sistema", cita.
Para Esgotti, a "empurroterapia" está sendo combatida. "O profissional não está, regra geral, repetindo a ideia de empurrar remédio. A conscientização no meio profissional é notória. Mas é preciso ações permanentes entre farmacêuticos, médicos, auxiliares de saúde da rede e o usuário", explica.
Medicamentos para dor de cabeça e ansiolíticos estão entre os mais usados
Relaxantes musculares integram grupo de remédios com maior consumo irracional por parte das pessoas, segundo o professor Alexandre Bechara
Alexandre Bechara tem dupla relação com os fármacos. Professor universitário da área, ele também é diabético e, por isso, usa diariamente medicamento para o controle da glicemia. "É uma questão de disciplina. Não uso fora do prescrito, sem necessidade. Isso faz mal. Mas no meu círculo de amizades é comum a medicalização com o argumento de resolver problemas. As pessoas fazem por hábito, imediatismo. Há uma intolerância à dor expressa também nesse tipo de comportamento", observa.
Para o professor, o uso indiscriminado de remédios reúne quatro elementos principais. "Dor de cabeça, relaxante muscular, ansiolítico e para dormir são os mais comuns. E é exatamente no grupo de maior consumo por uso irracional que está a incidência de maior possibilidade de educação para que sejam evitados. É fundamental que seja disseminada, de forma permanente, a reversão da cultura do uso irresponsável de remédios. É preciso abordar de forma objetiva os prejuízos desse hábito. É um caso de saúde pública que precisa ser levado em conta", afirma.
Para Bechara, é evidente que o desenvolvimento da indústria farmacêutica contribuiu para a melhora nos indicadores de expectativa de vida e de qualidade. "Mas também a OMS destaca que 30% das causas de mortes são por intoxicação por medicamento e que 20% das causas de óbitos estão ligadas a medicamentos. E não estamos falando de superdosagem relacionada a suicídio, mas de uso indevido, doping inconsciente, ainda que não intencional. É grave a relação disso com desinformação e a questão cultural", aponta.
A intolerância a dor é fato, na visão de Bechara. "Há pouca tolerância à dor. É claro que mensurar intensidade de dor é difícil para cada indivíduo. Mas é preciso apontar que há muita incidência de pessoas sem qualquer capacidade de conviver com a dor, mesmo as de curto prazo. Isso, associado a hábitos não saudáveis de vida, gera consequências. Quem realiza atividades físicas regulares, tem dieta equilibrada, cuida do bom sono, equilibra as tensões e reações do dia a dia tem no corpo um aliado. O corpo reage, produz reações metabólicas naturais e, se alguma dor aparece, esse quadro do equilíbrio gera condições de reação do corpo, do organismo, de forma natural e sem uso de remédio em muitos dos casos. Mas as pessoas esperam", ressalta.
O médico José Roberto Ortega Júnior, intensivista e especialista em cuidados paliativos, vê desvirtuamento da natureza humana. "Ajustar o modo de vida a hábitos saudáveis é uma questão cultural, de amor próprio. A dor faz parte da vida e é um desses elementos que precisam ser observados. É claro que para cada dor é preciso investigar os sinais. Mas em boa parte das ocorrências, a convivência associada a pequenas intervenções, sem usar drogas, geram resultados melhores, mais duradouros. Mas o ser humano tem dificuldade em lidar com a dor", observa.