Publicado em: outubro 10, 2017
O sucesso deste mercado não seria possível sem uma estratégia de marketing extremamente elaborada, que tem produzido um deslize perigoso nas funções entre profissionais que se ocupam de crianças, a saber, que tais indicações não provenham mais unicamente dos profissionais da saúde, psiquiatra ou psicólogo, mas que sejam também feitas por professores. Na imagem, os diversos medicamentos produzidos a partir do metilfenidato, princípio da Ritalina.
Alfredo Gil, da APPOA
Estas quatro letras – TDAH – estão fazendo brilhar os olhos dos laboratórios farmacêuticos na França. Nos Estados Unidos, a venda de remédios para tratar o TDAH, vinte anos atrás, atingia 40 milhões de dólares. Atualmente, ela chega ao valor obsceno de 10 bilhões, pelo simples fato de que o dito diagnóstico multiplicou-se durante este tempo. Estes dados, que são bem conhecidos, são lembrados no prefácio do excelente livro do psiquiatra e psicanalista francês Patrick Landman, “Tous hyperactifs ?” (ed. Albin Michel, 2015, “Todos hiperativos?”), escrito por Allen Frances, professor emérito da Universidade de Duke, na Caroline do Norte. O Professor Frances, tendo participado da redação do Manual de Diagnóstico Estatistíco, DSM-IV-R, recusou-se a colaborar e assinar o DSM-V, denunciando os autores deste de “patologizar” as emoções, a sociedade, e as crianças ao extremo, ocasionando uma overdose diagnóstica cujo compromisso é unicamente com a cupidez da indústria farmacêutica; donde, por exemplo, seu artigo do 31 de março de 2013 no New York Post, intitulado “A disease called childhood” (Uma doença chamada infância).
Quando, em 2015, Allen Frances redigiu o dito prefácio, ele estava alertando para o risco de que o procedimento americano chegasse na França. Dois anos depois, graças à política do partido En Marche do novo Presidente da República Francesa, nossas crianças estão, infelizmente, a caminho do perigo anunciado pelo Professor americano. Sexta-feira passada, dia 29, na Universidade Paris-10 – Nanterre, aconteceu uma jornada intitulada “TDAH e acesso aos tratamentos”, sob os auspícios do Presidente Emmanuel Macron e da Ministra da Saúde, Agnès Buzyn, e financiado por quatro laboratórios farmacêuticos, uma vez que o tratamento prescrito é essencialmente medicamentoso, chamado Ritalina, derivado da anfetamina. Nenhum psicanalista desta universidade ou de onde quer que seja foi convidado a participar. Pior ainda, a entrada de colegas psicanalistas que pretendiam tomar a palavra foi barrada. Vários colegas tiveram suas inscrições simplesmente canceladas (vejam aqui).
No campo da psiquiatria, seria ingênuo denunciar a importância terapêutica dos psicotrópicos que devemos aos avanços da indústria farmacêutica, cuja origem situamos em 1952, graças ao psiquiatra francês Jean Delay, que conseguiu aperfeiçoar especialmente a administração de uma molécula (clorpromazina).
Há exatamente 30 anos (eu ainda não tinha vinte) decidi trabalhar como atendente de enfermagem (estatuto que não existe mais) numa clínica psiquiátrica de Porto Alegre com reputação nacional. Foi o primeiro local sério de residência médica em psiquiatria do Brasil, que, além da sua função primeira de tratamento, desenvolvia um trabalho de pesquisa e de formação no que se chamava, na época, “psiquiatria dinâmica”. Quando, dois anos após, comecei meus estudos de psicologia, me chamou atenção um discurso bastante ingênuo, entre colegas, que consideravam que internações e tratamento medicamentoso não era uma abordagem decente. Em termos absolutos, posso estar de acordo. Mas, somente quem ignora as formas e as desmedidas que a loucura do e no homem podem tomar, que designamos psicose, poderia pensar que, enquanto profissional, poderíamos ajudar e tratar alguns de nossos pacientes sem passar por estes tratamentos, que, sim, vale lembrar, podem ter um momento compulsório. Se muitos conseguem chegar aos nossos consultórios, ambulatórios ou hospital de dia, que são dispositivos terapêuticos fundamentais, o âmbito farmacêutico tem uma participação importante no tratamento, amenizando os sintomas psiquiátricos que, por vezes, podem impedir as pessoas que deles padecem de sair de suas casas, quando não de seus quartos.
Logo, se após o debate sobre o autismo, abordo agora as crianças ditas hiperativas, é que o momento é grave, pois as considerações entre terapêutica e analise clínica se modificaram profundamente desde a referência a Jean Delay. Lá onde Woody Allen dizia “I have questions to all your answers” podemos propor que a indústria farmacêutica diz “tenho respostas (terapêuticas) às suas questões, que nós inventamos”.
Sim, o TDAH é uma invenção. Esta afirmação, que pode ser interpretada como contestação puramente subjetiva da minha parte, vem do próprio Dr. Leon Eisenberg, psiquiatra infantil considerado o pai científico do TDAH.
Ele revelou, sete meses antes da sua morte, em fevereiro de 2009, na revista alemã Der Spiegel, que o TDAH foi uma invenção, “exemplo de doença fictícia”.
O aspecto agravante na difusão epidêmica do TDAH, que não se aplica ao autismo, deve-se ao fato referido anteriormente, ou seja, o de que a solução terapêutica, de uma orientação clínica em voga, é 100% medicamentosa com a prescrição da Ritalina. Somente revistas independentes da indústria farmacêutica, como, por exemplo, Prescrire, ousam revelar as consequências de um tal tratamento, tais quais problemas cardiovasculares ou atraso no crescimento, sobretudo porque a Ritalina tem sido administrada em crianças aos 4 anos de idade. Aqui, vale salientar que o sucesso deste mercado não seria possível sem uma estratégia de marketing extremamente elaborada, que tem produzido um deslize perigoso nas funções entre profissionais que se ocupam de crianças, a saber, que tais indicações não provenham mais unicamente dos profissionais da saúde, psiquiatra ou psicólogo, mas que sejam também feitas por professores. Estes teriam por missão observar em seus alunos algumas atitudes suspeitas, além dos problemas evidentes de comportamento e agitação, podendo, assim, orientar seus pais; por exemplo: roer as unhas, os cabelos, os dedos, as roupas; mostrar-se insolente com os adultos; chorar frequentemente ou facilmente; não conseguir ter amigos ou mantê-los, etc.
A banalização tem sido o segredo no diagnóstico de hiperatividade para as crianças, do mesmo modo que o “ser bipolar” foi para os adultos, e a difusão da Ritalina tem sido tanto mais eficiente porque a “cura” da dita doença é divulgada entre os pais, que – sofrendo, evidentemente, com seus filhos que padecem da impossibilidade de repouso físico e psíquico – trocam informações sobre a calma restabelecida graças à “fórmula mágica”.
Se as crianças se calam (também, fisicamente) sob o efeito da Ritalina, saibam, representantes políticos, profissionais da saúde, pais e professores, que nem por isso elas consentem.
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Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI).