Alimentos artificiais e a volta às origens: as oportunidades estarão no mundo dos extremos?
O grupo de pessoas para em frente à ordenha das vacas. É uma fazenda típica da Califórnia: milhares de vacas confinadas, altíssima eficiência, uma verdadeira fábrica de produção de leite, da maneira necessária para alimentar, com custo competitivo, padronização e qualidade, os 9 bilhões de habitantes que o mundo terá em alguns anos. Um exemplo do sucesso da produção de alimentos que caracterizou os avanços do século XX.
Uma consumidora, sabendo da minha especialidade na cadeia do leite, comenta com suspeição que aquela indústria, na esteira da eficiência, produz uma montanha de dejetos; gera odor desagradável; mantém as vacas em ambientes confinados e separa os recém-nascidos de suas mães (um argumento forte em especial para mulheres, por razões óbvias). Ela fica ainda mais descrente daquilo tudo ao saber que a taxa de descarte passava de 40% ao ano. Em outras palavras, as vacas viravam carne em média apenas 2,5 anos após terem iniciado sua vida produtiva. Depois disso, não serviam mais ao sistema.
Figura 1 – Fazenda produtiva da Califórnia.
Para quem atua na cadeia produtiva, essa visão soa quase irreal: as vacas são bem tratadas, caso contrário não teriam o desempenho produtivo que têm; as propriedades como aquela têm forte compromisso ambiental (esta inclusive tinha uma grande área para geração de energia via painéis solares), com tratamento de dejetos e tendo que cumprir rígidos programas de conduta ambiental; e que o descarte precoce dos animais era a maneira mais eficiente de reduzir os custos de produção e facilitar o acesso a mais pessoas ao nobre alimento.
Mas esses são argumentos racionais, ou de quem vive o negócio. O problema é que o consumidor tem suas percepções, cientificamente corretas ou não, influenciadas por uma infinidade de fontes de informação. Mais do que isso, estas percepções são influenciadas também pela maneira como o consumidor se vê ou quer se ver no mundo. Se ele se considera uma pessoal legal, vai ficar mais feliz consigo se comprar um produto feito por um pequeno produtor familiar, em que as vacas pastam “felizes”, caso assim veja o mundo, influenciado pelo entorno. Irá querer consumir algo que tenha um significado maior do que a combinação de proteínas, minerais, vitaminas, carboidratos e gorduras. Mesmo que custe mais caro. Vale a máxima de que você é, afinal, o que você come.
Logicamente, isso soa distante quando ainda temos uma parcela enorme de pessoas no mundo com pouco acesso a alimentos em quantidade e qualidade mínimas. Mas, por outro lado, é inegável que este processo existe e pode ser fonte de valor para muitos que captarem a oportunidade. Também, vale aqui recordar o filósofo romano Cícero que, há 2.000 anos, cunhou a célebre frase: “os eventos futuros projetam sua sombra muito antes”. Convém não ignorar.
Essas mudanças, evidentemente, não afetam apenas a produção, mas também – e talvez principalmente – o processamento de alimentos e o valor das marcas das empresas. E já geram consequências.
Um interessante estudo produzido pela consultoria Deloitte, em 2016, mostrou que, ao invés de valorizar principalmente preço, performance e sabor, os novos direcionadores de consumo envolviam cada vez mais transparência, cidadania corporativa, saúde e bem-estar e segurança. É uma mudança e tanto! Mais e mais, as pessoas estão buscando consumir de empresas que têm, efetivamente, um propósito maior do que lucrar e crescer.
Os impactos são grandes. No âmbito da produção, os profissionais de ciências agrárias e veterinárias ou os cientistas e engenheiros de alimentos foram treinados com a missão de produzir algo gostoso, com preço competitivo e com o desempenho proposto. De repente, isso não é mais suficiente, e o que é necessário está bem além de suas atribuições ou competências. Do lado do negócio, mais ainda. A própria indústria de alimentos baseou-se no tripé escala/padronização/qualidade com eficiência para crescer.
O estudo revela ainda um ponto muito interessante: o conceito do que significa um atributo pode mudar ao longo do tempo. O exemplo é a saudabilidade. No passado, a composição nutricional adequada era sinônimo de saudável, mesmo que essa composição fosse obtida através da adição de diversos ingredientes externos. Essa visão está mudando. O novo paradigma de consumo trabalha o conceito de quanto menos ingredientes, quanto menos processamento, quanto mais próximo da origem, melhor e mais saudável.
Figura 2 – Menos é mais.
É, de fato, uma espécie de volta às origens, em que o consumidor refuta a industrialização excessiva, as longas cadeias de fornecimento e a falta de transparência a respeito de como o alimento é feito (parêntesis: episódios como a Operação Carne Fraca são um forte anabolizante para essa tendência, contribuindo também para que o consumidor tenha cada vez menos tolerância com as eventuais falhas neste tipo de produção).
E, claro, isso repercute nas grandes corporações de alimentos. O mesmo estudo mostra que as 25 maiores empresas de alimentos do mundo, entre 2009 e 2013, tiveram crescimento marginal, de apenas 1% ao ano, contra 4,9% de empresas menores, com marcas diferenciadas e que, possivelmente, compensam o menor poderio com uma maior aderência aos novos direcionadores.
É fácil agora perceber que o pensamento da consumidora na fazenda californiana não é isolado nem está descontextualizado, ao contrário: segue uma linha que conversa com essa nova visão do consumo, em que preço e qualidade básica não são mais suficientes. O produto final não basta; é preciso ver como foi produzido, e por quem.
Como lidar com esse cenário? Enfrentar a visão do consumidor, insistindo que está “equivocado”? Ou adaptar-se, captando as oportunidades? O que as grandes corporações podem efetivamente fazer? Perguntas difíceis…
Para tornar a análise um pouco mais complexa do que isso, vamos nos transportar agora para o Vale do Silício: San Francisco, sede do Google Developers Launchpad. Para incredulidade dos participantes do evento de imersão em AgTechs, um jovem, sócio da Ava Winery, desafia os participantes dizendo que irão produzir em laboratório qualquer tipo de vinho, qualquer safra, a preços competitivos. Quer um Chateau Petrus 1982? Sem problemas. Afinal, como ele disse, o vinho é uma combinação de moléculas. Basta recriá-las (e, certamente, a tecnologia e o conhecimento para isso só aumentarão) e, voilà, tem-se o produto genérico, que você poderá beber até comendo um hambúrguer de fast food.
Este não é o único exemplo de comidas de laboratório; quem já comeu o Impossible Burger me jurou que o produto parece mesmo carne, apesar de ser feito de vegetais. Não se engane: vem aí uma onda de alimentos genéricos, ou seja lá como os chamaremos. O que isso vai virar, ninguém sabe. As pessoas irão querer realmente consumir em seu dia a dia produtos como esses, ou ficará somente no campo da curiosidade?
Figura 3 – Alimentos de laboratório (Google Developers Launchpad).
Não sei. De qualquer forma, vale refletir: mundo interessante, esse! De um lado, um processo de volta às origens, de processamento mínimo, de conhecer o produtor, como os antigos faziam. De outro, o cúmulo da artificialidade: a comida feita em laboratório. Ambas tidas como vertentes de futuro. Ambas buscando algo novo, de formas muito distintas.
Porém, há uma linha que relaciona as tendências aparentemente opostas: fazer o bem. No primeiro caso, para os animais, para as famílias, para as comunidades e para o ambiente (o que é simplista, já que há estudos mostrando que a produção industrial gera normalmente menor pegada de carbono por unidade produzida do que as menos intensivas); no segundo, para os animais (que passam a não ser explorados) e para o ambiente, já que se usaria menos água e outros recursos.
Tudo isso gera incertezas e ameaças (e oportunidades, para quem estiver do lado certo da tendência ou souber se reinventar). É um cenário complexo e novo, em que as bases do crescimento da indústria de alimentos nos últimos 100 anos serão muito desafiadas. Certamente, teremos espaço para novos vencedores neste ambiente, seja com novas propostas de valor, seja modelos de negócio disruptivos, ou seja com propósitos mais alinhados com o que deseja o consumidor. Tempos sem dúvida interessantes!
(Estive no evento AgTech Immersion Program – Seeds of Our Future, realizado no Vale do Silício. Fui com o intuito de conhecer o ecossistema de startups, com foco no agronegócio. A AgriPoint está participando de um novo negócio – a AgTech Garage, que será um ponto de apoio e conexão para a inovação no agro).
Saiba mais sobre o autor desse conteúdo
Marcelo Pereira de Carvalho Piracicaba – São Paulo
Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP), Mestre em Ciência Animal (ESALQ/USP), MBA Executivo Internacional (FIA/USP), diretor executivo da AgriPoint e coordenador do MilkPoint.
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