A febre das farmácias em Cuiabá

Mato Grosso tem praticamente quatro vezes mais farmácias do que o recomendado pela organização mundial da saúde

JOANICE DE DEUS
Da Reportagem

Quem transita pelas principais vias da Capital fica com a sensação de que há uma farmácia em cada esquina. E é quase isso. Com menos de sete quilômetros de extensão, a Avenida do CPA, em Cuiabá, tem 20 desses estabelecimentos. O ápice da overdose é um trecho de 200 metros, entre o viaduto do CPA e a Rua da Cereja, onde estão concentradas seis lojas.

Há no segmento uma preferência pelos pontos de esquina. É o fenômeno das cornershops, uma estratégia para ter maior visibilidade e atrair os consumidores que ziguezagueiam em busca de ofertas e descontos. Nessa disputa, entram também as garrafas de chá e café, as cadeiras de espera, estacionamento e até brinquedoteca.

Com 285 farmácias e drogarias, Cuiabá tem um estabelecimento para cada 1,9 mil habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que essa relação seja de uma para 8 mil habitantes. Sinal de tempos “hipocondríacos e narcísicos”, diz o psicanalista Mario Corso. Em duas décadas, o número de farmácias cresceu 45% na cidade.

Mas essa proliferação não é exclusividade de Cuiabá, que ocupa a nona colocação no ranking das capitais brasileiras. Nos últimos anos, a febre se alastrou para municípios do Interior. Mato Grosso conta, atualmente, com 1812 farmácias e drogarias comerciais, o que significa um salto de 45% em cinco anos (dados do Conselho Regional de Farmácia do Estado, o CRF-MT, indicam que em 2013 existiam 1249 estabelecimentos). Ou seja: uma farmácia para cada 1,6 mil habitantes, proporção próxima da Capital.

O que explicaria o fenômeno? A indústria farmacêutica tem o diagnóstico na ponta da língua: o crescimento da classe média, o aumento da expectativa de vida, a diversificação do negócio e o melhor acesso a diagnósticos e tratamentos seriam algumas das causas da expansão.

“O aumento da quantidade de farmácias é reflexo da demanda por qualidade de vida, de estar bem consigo mesmo. É uma demanda dos tempos modernos e, além disso, o Brasil está envelhecendo”, avalia o presidente da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto.

Há, no entanto, quem considere o boom de estabelecimentos farmacêuticos sintoma do descontrole de uma complexa engrenagem envolvendo laboratórios, médicos e pacientes e que leva ao excesso de medicalização da vida.

Autor do livro Voltando ao Normal (Versal Editores, lançado no Brasil em 2016), o renomado psiquiatra norte-americano Allen Frances afirma que milhões de pessoas saudáveis – incluindo crianças – estão tomando remédios sem necessidade. Ao contrário do que muitos pensam, a culpa, segundo ele, não é do nosso atual ritmo alucinante de vida, mas da “inflação diagnóstica” induzida pelos fabricantes de pílulas.

“A vida sempre foi difícil. O crescimento de transtornos mentais não ocorre porque a vida está mais estressante ou porque estamos adoecendo mais. Está relacionado com o interesse comercial dos laboratórios, o desorganizado sistema médico e alguns critérios de diagnóstico mais frouxos – diz Frances, em entrevista por e-mail.

Na avaliação da psicóloga Helivalda Pedroza Bastos, a dependência de pílulas foi gerada, ao longo dos anos, a partir de ações deliberadas dos laboratórios para disseminar a “cultura do remédio”. A pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) diz que as pessoas passaram a confiar mais nos comprimidos do que na própria resiliência. Uma das consequências seria o uso abusivo de medicamentos, como a Ritalina, utilizada no tratamento do transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH), sobretudo em crianças e adolescentes. Em 10 anos, o consumo do medicamento saltou 775% no país.

Pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o médico Flavio Danni Fuchs, autor do livro Farmacologia Clínica e Terapêutica, afirma que o ser humano é movido pelo “instinto de cura”. Em busca de alívio, lota as farmácias, que são vistas como uma espécie de “paraíso”, onde há solução para quase tudo: “As pessoas são suscetíveis a imaginar que os remédios são mais eficazes do que realmente são. Muitas coisas têm uma resposta independentemente do tratamento. É o famoso efeito placebo. Por isso, costumo dizer para meus pacientes: não faça nem da doença nem do remédio o centro da sua vida”.

LEGISLAÇÃO – Presidente do CRF-MT, o farmacêutico Alexandre Henrique Magalhães, 37 anos, diz que “ao mesmo tempo que pode parecer um número elevado de farmácias é preciso analisar também a distribuição geográfica desses estabelecimentos. Pois existem localizações que podem estar desprovidas ou com acesso difícil e do outro lado podemos ter localizações com estabelecimentos em número excessivo. Uma análise que deve ser feita junto com a quantidade de estabelecimento é quanto à distribuição deles e ainda como se apresenta esse estabelecimento para sociedade”, disse.

Vários conselhos de farmácias no país defendem leis de zoneamento urbano, estabelecendo distância mínima entre as lojas, poderiam evitar a alta concentração que estimula a automedicação. Houve, recentemente, a tentativa de incluir essa exigência em uma legislação federal, mas não vingou. Entidades como a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) argumentam que a medida fere princípios constitucionais como os da “livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica”.

O modelo de negócio inspirado nas drugstores norte-americanas é alvo de críticas. O médico José Ruben Bonfim, coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), defende que as farmácias e drogarias deixem de ser estabelecimentos comerciais, que também vendem produtos de higiene e beleza, e sejam apenas estabelecimentos de saúde. É o que determina a Lei 13.021, sancionada em 2014, mas ainda pendente de regularização. Membro do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Bonfim considera fundamental o fim do enquadramento de medicamentos como isentos de prescrição médica. Essa distinção, segundo ele, “só interessa ao mercado” e leva as pessoas a acreditarem que os produtos com essa classificação não causam danos à saúde.

“É um problema muito sério. Você entra numa farmácia e é só estender a mão e sair enchendo uma sacola de venenos. Um remédio, mesmo autorizado pela Anvisa, pode ser um veneno. Não tem cabimento se vender anti-inflamatórios do jeito que se vende no país. Muito tardiamente passamos a controlar os antibióticos. As tragédias que estamos vivendo são tragédias ocultas”, disse.

Autora do livro Tarja Preta, a jornalista Marcia Kedouk lembra que “medicamentos salvam e prolongam vidas e não faz sentido ser contra eles”: “A questão é o excesso. Muitos dos nossos males não são tratáveis com comprimidos e a medicalização cria uma ditadura da felicidade. Todo mundo precisa estar sempre bem e feliz. Acontece que sentimos dor e tristeza, ansiedade, medo e desânimo. Faz parte da natureza humana e nem sempre requer um remédio”.

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