Como a BRF pretende virar o jogo
O fim das restrições do Cade à marca Perdigão abre caminho para que a gigante de alimentos avance sobre a JBS, que tomou parte do seu mercado com a popularização da Seara
Moacir Drska
Uma tempestade perfeita. A expressão, recorrente em tempos de crise, foi a principal justificativa encontrada pela BRF ao reportar, em fevereiro, o primeiro prejuízo de sua história. Criada em 2009, a partir da fusão entre a Sadia e a Perdigão, a gigante dona de uma receita de R$ 33,7 bilhões acabava de tornar pública uma perda de R$ 372 milhões, em 2016. Antes e depois da divulgação do resultado, um mantra guiou as tentativas da alta cúpula da companhia para acalmar os ânimos dos acionistas, dos investidores e do mercado.
Liderados pelo empresário Abilio Diniz, presidente do conselho de administração, e pelo CEO global, Pedro Faria, os esforços ressaltaram o impacto conjunto e devastador de fatores como a alta sem precedentes do milho – utilizado com base da alimentação de aves –, a volatilidade do câmbio e a recessão. Mal havia terminado as explicações ao mercado, a empresa foi acometida, como todo o setor, pela atabalhoada operação Carne Fraca, da Polícia Federal. Passados pouco mais de quatro meses, muitas incertezas ainda pairam sobre o grupo. No entanto, alguns sinais começam a mostrar um caminho para que a BRF possa virar esse jogo.
A perspectiva de tempos menos turbulentos ganhou um alento na segunda-feira 3, com o fim das últimas restrições impostas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para aprovar a criação da BRF. Em 2011, o órgão suspendeu o uso da marca Perdigão por um período de cinco anos, iniciado em 2012. A partir de julho de 2015, o grupo estava autorizado a reocupar, gradativamente, seu espaço no varejo. A primeira categoria liberada foi a de presuntos e linguiças. Um ano depois, os salames. E, agora, a barreira foi definitivamente quebrada com a permissão para atuar no segmento de pratos prontos.
O fim das amarras coincide com outro fator que pode beneficiar a BRF: os negócios da JBS, dona das marcas Seara e Friboi, e sua maior concorrente, estão em xeque, na esteira dos escândalos de corrupção envolvendo seus controladores, os irmãos Joesley e Wesley Batista. “A BRF sofreu com as limitações da Perdigão e a agressividade da Seara”, diz Alberto Serrentino, fundador da consultoria Varese. “Mas o pêndulo virou. O momento é totalmente favorável à empresa.” A BRF reconhece, porém, que é preciso rever algumas de suas estratégias para aproveitar essa janela de oportunidades. A principal delas é estabelecer claramente os diferenciais entre a Sadia e a Perdigão.
“Historicamente, as duas marcas sempre competiram. Elas precisam ser complementares. Não podem mais brigar uma com a outra”, diz Cecília Alexandre, gerente-executiva de marketing da Perdigão. “A BRF bateu cabeça para consolidar e comunicar essa diferenciação nos últimos anos”, afirma um executivo do setor. “E isso só favoreceu o avanço da Seara.” O grupo já traçou o roteiro para superar os equívocos do passado. A ideia é reforçar o posicionamento premium da Sadia, com a aposta no apelo de alimentação saudável. Para a Perdigão, o plano é investir em um portfólio amplo, com preços um pouco mais acessíveis e embalagens maiores, entre outros ingredientes. “A Perdigão é uma marca mais democrática e que ainda tem um bom lastro de confiança com o consumidor”, diz Cecília.
Depois de cinco anos fora do mercado, a nova linha de lasanhas é um dos exemplos desse conceito. Os lançamentos incluem sabores como Frango com Bacon e vêm em embalagens de 600g e 1 kg. O retorno visa o ganho de tração em um mercado que movimentou R$ 740 milhões nos últimos doze meses, segundo a consultoria Nielsen, e no qual a Perdigão detinha uma participação de 25%, em 2012. A BRF não divulgou os preços sugeridos para a linha. Algumas fontes estimam que a embalagem de 600g será comercializada na faixa de R$ 10, o que a coloca no mesmo patamar de preços do produto equivalente da Seara.
A Perdigão também está lançando uma linha de pão de queijo, que será vendida no varejo e no segmento de food service. “Além de complementar o portfólio e aproveitar os mesmos canais de distribuição, é uma categoria ainda muito pulverizada e com grande potencial de crescimento”, diz Rafaela Natal, consultora de food service da AGR Consultores. A DINHEIRO apurou outros planos no radar da BRF. Um deles é trazer a marca de hambúrgueres de carne bovina Paty, comercializada pelo grupo na Argentina, para o Brasil.
A companhia também não descarta investir em marcas mais populares. “A BRF entende que, se for preciso jogar mais duro, com marcas que remunerem menos, ela fará esse movimento”, diz uma fonte próxima à companhia. “É um segmento que, atualmente, concentra mais de 40% do mercado brasileiro. E eles sabem que não podem ignorar esse número.” Essa alternativa já havia sido aventada pelo CEO Pedro Faria. “Com o fim das restrições do Cade, o nosso leque de opções se amplia fortemente e teremos oportunidade de atuar nos segmentos de entrada”, afirmou o executivo, em teleconferência com analistas, em fevereiro.
Com estratégias comerciais agressivas, produtos de boa qualidade e campanhas milionárias protagonizadas pela apresentadora Fátima Bernardes, a Seara, adquirida pela JBS em 2013, foi a principal marca a se beneficiar da busca dos consumidores por produtos com preços mais acessíveis, em virtude da crise. Com a Perdigão praticamente fora do escopo, a BRF tinha pouca margem para responder ao ataque. De uma participação de 52% em 2013, considerando Sadia e Perdigão, o grupo caiu para 46%, em 2016, segundo a Nielsen. No intervalo, a Seara saiu de 11% para 15%. “A Sadia é uma marca premium. O grupo não queria queimar esse cartucho”, diz uma fonte próxima à empresa. Ele acrescenta que, por mais que investisse em eficiência na produção, a sensação é de que era impossível chegar ao patamar de preços da concorrente.
Pouco a pouco, essa situação foi minando o moral da equipe da BRF. “A conta não fechava. Hoje, muito do que estava por trás dessa equação da JBS está sendo explicado”, diz a mesma fonte. Ainda é difícil medir a extensão dos escândalos para a JBS. Mas os analistas apontam alguns riscos no curto e médio prazo. A possibilidade de veto às marcas do grupo por varejistas e o menor poder de barganha nas negociações com esses canais são alguns dos possíveis impactos. “Quem não suspender a compra de produtos da JBS, vai aproveitar para negociar condições pouco atrativas para a empresa”, diz Alan Kuhar, professor de administração e especialista em varejo da ESPM. “É provável que eles percam espaço nas gôndolas.”
Concorrência: a Seara, da JBS, foi a marca que mais se beneficiou com as restrições do Cade à Perdigão (Crédito:Pedro Dias / Ag. Istoé)
Uma das chaves do sucesso da JBS, os esforços de marketing, em contrapartida, também ajudaram a colocá-la na berlinda nos últimos meses. Após a deflagração da operação Carne Fraca, em março, o grupo veiculou campanhas para ressaltar a credibilidade de suas marcas. “Até então, boa parte dos consumidores não associava essas marcas à JBS”, afirma Rafaela Natal, da AGR Consultores. “Foi um tiro no pé, que acabou expondo ainda mais a companhia quando os casos de corrupção vieram à tona.” E, agora, as marcas do grupo pouco aparecem na mídia. Enquanto isso, os concorrentes estão ampliando os investimentos nessa frente.
A Carne Fraca também expôs a BRF. Mas a operação trouxe uma contribuição para a companhia. Quando assumiu o negócio, em 2013, a gestão encabeçada por Abilio Diniz e executivos ligados ao fundo Tarpon, um dos maiores acionistas do grupo, prometeu transformar a empresa na “Ambev dos Alimentos”. Com um corte radical de custos e de pessoas, o plano era implantar um modelo menos focado na produção e mais orientado ao consumidor. A execução dessa estratégia, no entanto, ficou aquém do esperado. Atualmente, a empresa vale cerca de R$ 30 bilhões, ante R$ 36,5 bilhões, cinco anos atrás (veja o quadro ao final da reportagem).
Nesse intervalo, a receita saiu de R$ 28,5 bilhões, em 2012, para R$ 33,7 bilhões, em 2016. O prejuízo no ano passado só reforçou o descontentamento entre os investidores. Contudo, a sensação de que a Carne Fraca tinha o potencial de aprofundar essa crise aproximou a alta cúpula da BRF e seus acionistas. “A operação retirou o direito de um apontar o dedo para o outro”, diz uma fonte próxima à companhia. A união foi selada em abril, com a renovação do mandato de Abilio à frente do conselho de administração. Essa aproximação ajudou a iniciar a reformulação prometida por Abilio Diniz em teleconferência com analistas, em fevereiro.
“Nós cometemos alguns erros e está na hora de aceitar isso”, afirmou o empresário na época. As primeiras medidas atacam algumas das principais críticas ao modelo adotado até então. “O principal erro foi trocar executivos com conhecimento profundo do agronegócio por profissionais de perfil financeiro, ligados à Tarpon, logo que assumiram”, diz um executivo do setor financeiro. Ele não atribui os péssimos resultados da BRF apenas à “tempestade perfeita”. “Uma empresa que depende tanto do milho não pode deixar de antecipar a compra no mercado futuro ou, no mínimo, fazer a gestão de risco disso.” O grupo parece ter entendido essa mensagem.
Em março, Alexandre Almeida, ex-CEO da Itambé e ex-diretor da JBS, foi nomeado novo CEO da operação brasileira. A companhia também anunciou uma nova estrutura global, com 14 vice-presidências, que irão centralizar todos os aspectos relacionados à operação em suas respectivas regiões. “A empresa passava muita coisa para a ponta. A equipe comercial tinha que se preocupar com questões fora do seu escopo e perdia o foco”, afirma uma fonte próxima à empresa, que ressalta que ainda é cedo para dizer se a BRF vai ter sucesso nessa reformulação. “Mas tudo indica que a empresa está mais madura e alinhada para enfrentar o que vem pela frente.”
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