O desafio atual é diminuir o ritmo de produção de alimentos
Os problemas em relação à sustentabilidade que nossa cadeia enfrenta não dizem mais respeito à busca de área de produção, mas à maneira como se produz
16 agosto 2017 | 18:22 por Roberto Smeraldi
A pós-verdade cultiva especial apego ao mundo da comida e é generosa em memes fantasiados de ciência. Um dos mais frequentes – que se infiltra até no power point de executivos de renome – reza assim: “de acordo com a FAO, o mundo terá de dobrar a atual produção de cereais, para alimentar 9 bilhões de pessoas em 2050”.
A FAO jamais defendeu tamanha extravagância: mas em que medida a propagação desse meme tem a ver com nossa tarefa de cozinheiros?
Aos fatos: em 2012, a FAO publicou um estudo estimando que a produção agregada de alimentos deveria aumentar em 60%, em relação à média do período entre 2005 e 2007, para atender a “demanda” comercial projetada para 2050. Ora, a existência de uma demanda comercial nada tem a ver com “alimentar pessoas”. De um lado, os que não têm dinheiro nem sequer perfazem a demanda e, por outro, os que perfazem a demanda comem pouco mais da metade do que se produz, mesmo que um terço deles coma demais.
Sendo que de 2005 para cá a produção de alimentos já subiu expressivamente, e a projeção de aumento da demanda por cereais é inferior à da média agregada de todos os alimentos, na realidade o aumento projetado na demanda por cereais – em relação ao momento atual – não passa de 30%. Ou seja, no atual ritmo de aumento de produção, de 1,9% ao ano, chegaríamos a atender a projeção de demanda para 2050 já por volta de 2035.
Em outras palavras, o desafio atual é o de diminuir o ritmo de crescimento da produção, não de aumentá-lo, mesmo sem considerar perdas e desperdício de comida. Já se a preocupação fosse aquela de alimentar pessoas… bem, os 2.068 milhões de toneladas de produção anual de cereais no período 2005-2007 já eram bem superiores aos 1.500 mi/t que são projetados como efetivamente consumidos em 2050. Isso porque as projeções da FAO assumem, para 2050, o mesmo padrão atual de perdas e desperdício, pelo qual apenas a metade dos cereais produzidos é efetivamente consumida (e uma pequena parte, transformada em combustível).
Estudo publicado na semana passada na Bioscience da Oxford University Press – por um grupo de cientistas agrícolas de universidades americanas (Hunter et al.)– oferece boa visão atualizada do estado da arte nas estimativas de demanda. Nada disso alterará os ingredientes das receitas dos memes, mas é um bom instrumento nas mãos de quem – como o cozinheiro – busca planejar o melhor uso do alimento.
Primeiro, significa que os desafios de sustentabilidade que enfrenta nossa cadeia não dizem mais respeito à busca de mais área para produzir, e sim à maneira que se produz, principalmente em termos de poluição ambiental, emissão de gases estufa e saúde do consumidor. Segundo, que na medida em que a curva de aumento da demanda agregada está prestes a se esgotar, vai se tornar ainda mais crucial a qualidade do que se produz e o que se produz. Por exemplo, a demanda por leite e laticínios é a única – entre os grandes componentes da alimentação – que terá ainda razoável crescimento per capita tanto no mundo desenvolvido, quanto naquele em desenvolvimento. Finalmente, que os profissionais mais desejados e disputados em todos os elos da cadeia – no campo, na logística, na cozinha… – serão aqueles mais preparados para reduzir as perdas, com tecnologia e criatividade.
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