Ainda as patentes: Soliris, monopólios ou acesso?
Detalhes Categoria: Artigos Publicado: 27 Abril 2018
Enquanto setores do governo federal, com sua base de apoio no Congresso Nacional, gestam um projeto para desregulamentar a análise pelo INPI [Instituto Nacional de Propriedade Industrial] e aprovar a concessão de patentes sem o necessário rigor e análise, contrariando dispositivos constitucionais e legais, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), atendendo solicitação da Advocacia Geral da União (AGU), toma a surpreendente decisão de quebrar a patente do medicamento Soliris (eculizumab), para tratamento da hemoglobinúria paroxística noturna – doença grave, que onera o SUS em mais de 600 milhões de reais anualmente para tratamento de cerca de 400 pessoas.
Queremos analisar esses dois fatos para além de seus significados isolados, em função do impacto no acesso a medicamentos, questão que se encontra hoje em discussão em todos os grandes foros mundiais que lidam com a saúde coletiva e os direitos humanos.
Por um lado, o Congresso Nacional estabeleceu, em 2016, a denominada Comissão Mista de Desburocratização, que apresentou e aprovou seu relatório no último mês de dezembro. Ao lado de questões como ambiente de negócios no Brasil, simplificação das normas para abertura e fechamento de empresas, regras aplicáveis aos serviços notariais e de registro, empresas de responsabilidade limitada, separação, divórcio e união estável, entre outros, foi incluído o ponto denominado Redução do tempo necessário para a concessão de patentes. Sob a alegação do estoque atual de patentes aguardando exame, do ingresso anual de cerca de 30 mil novos pedidos e da capacidade atual do INPI, destacando-se a necessidade de contratação de examinadores de patentes e o não contingenciamento de recursos, é feita a proposta de instituir um processo simplificado para apreciação de patentes sem exame. Essa proposta violenta o papel do INPI e atenta contra nossos marcos regulatórios e tratados internacionais, no que poderia configurar, além de atentado a nossa soberania nacional, um crime de lesa-pátria.
Se hoje mais da metade dos pedidos de patentes são indeferidos e a grande maioria se origina de inventores ou empresas de capital estrangeiro, estaríamos entregando nossa soberania, nossa responsabilidade perante a população e abrindo nosso mercado, ainda mais, ao capital estrangeiro, eivando-o de monopólios equivocados, com produtos que não trazem inovação, mas que passam a reinar sem concorrência, e, portanto, coibindo o acesso de contingentes populacionais a eles. Entre as recomendações da Comissão consta “agilizar o exame da proposta de alteração legislativa que tem por finalidade instituir um processo simplificado para apreciação de patente sem exame, a critério da parte interessada ou eventual concorrente, atualmente em estudo na Casa Civil da Presidência da República”.
Em nossa avaliação, essa proposta inclui-se nas atuais práticas do governo em promover o desmonte do setor público e retroceder em questões relevantes quanto à soberania nacional e defesa de interesses públicos.
Para nossa surpresa, decisão do Superior Tribunal de Justiça [ver aqui], pouco divulgada nos meios de comunicação, permite revogar a patente do medicamento Soliris, com base na argumentação de que patentes registradas entre as datas da assinatura do Acordo Trips da OMC e a entrada em vigência da nossa legislação de propriedade industrial, em 1996, já superaram os 20 anos de exclusividade e monopólio que representa a propriedade intelectual. Mais interessante ainda, entre as ponderações da AGU, foi incluída a consideração aos interesses da saúde pública, o que nos permite antever que outros produtos em condições similares também deverão ser analisados e abrir as possibilidades de competição genérica e trazer preços e condições que tornem determinados medicamentos acessíveis às populações que deles necessitam.
Recomendações recentes das Nações Unidas e da OMS advogam que os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem adotar definições rigorosas na invenção e na patenteabilidade que restrinjam o evergreening e que assegurem que as patentes concedidas atendam aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Caso o Poder Executivo teime em aprovar patentes com deferimento sumário sem exame, estará jogando por terra critérios consensuados mundialmente; estará trilhando um caminho sem volta de submissão a pressões e interesses que irão representar verdadeiramente uma ponte para o passado.
De outro lado, o precedente aberto pela AGU e pelo STJ apontam para as possibilidades de avançar em recomendações de utilizar as flexibilidades ou salvaguardas que o Acordo Trips estabeleceu, quais sejam, as licenças compulsórias e o uso governamental, com o objetivo de assegurar políticas públicas que incluam o acesso a medicamentos como parte do direito à saúde e em direção ao cumprimento da agenda 2030.
Para onde vai caminhar o Brasil? Cabe, em nome da cidadania, mudar esse quadro de dependência e construir um Brasil includente, que elimine nossas enormes iniquidades, e reconstruir o que está sendo desmontado, numa sanha sem limites.
*Jorge Bermudez é médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz); membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas.
Texto originalmente publicado no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
Agência Fiocruz
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