Mercado gourmet contra a crise

Pequenos empreendedores de Ceilândia apostam em produtos de qualidade para transformar comidas simples em pratos saborosos e sofisticados para chamar a atenção dos consumidores tudo por um preço competitivo

» HELLEN RESENDE*
» LETÍCIA COTTA*
» VICTÓRIA FERNANDES*
* Estagiárias sob supervisão de Mariana Niederauer

Publicação: 04/10/2017 04:00

Amanda Pessoa e Manuela Araújo ajudam os maridos a administrar um delivery de hambúrguer com molho artesanal

O mercado competitivo tem levado brasilienses de todo o Distrito Federal a encontrar saídas para atrair consumidores e manter a clientela fiel. Investir na qualidade dos produtos é o que muitos empresários têm feito, e os de Ceilândia não fogem à regra. No caso de quem trabalha no setor alimentício, o segredo é o sabor, e a maior cidade do quadradinho está cheia de gente criativa na culinária que transforma comidas simples em pratos de dar água na boca.

“Ceilândia possibilita produtos mais baratos e com maior variedade, por exemplo. Isso faz com que o vendedor preze pela qualidade. Fora que as pessoas não precisam ir para o Plano Piloto só para comer algo diferente”, afirma o professor de gastronomia e chef Alex Sabino, 39 anos. Assim, a “gourmetização” que tomou conta dos grandes centros urbanos fica bem mais acessível.

Os dindins de Cláudia Rodrigues podem levar pedaços de frutas, leite em pó, creme de avelã, cappuccino e até bombons

Exemplos não faltam. Dindin, chup-chup, geladinho ou sacolé? Não importa o nome dado a essa guloseima com gosto de infância. A doceira Cláudia Rodrigues, 32 anos, escolheu esse alimento congelado para driblar o desemprego. “Depois de ficar seis meses sem conseguir trabalho, decidi comercializar os doces na intenção de reunir o dinheiro para a festa de 15 anos da minha filha”, conta. Deu certo. O diferencial está nos produtos usados na fabricação. O dindin pode levar pedaços de frutas, leite em pó, creme de avelã, cappuccino, leite condensado e bombons, todos os produtos são de qualidade — o que faz o preço chegar a R$ 2 por unidade.

Carne

No ápice da crise financeira do país, a sociedade entre um grupo de amigos levou para Ceilândia Centro uma franquia de hambúrgueres gourmet que era sucesso em Luziânia (GO). “O mercado está farto de fast foods”, afirma a gerente da loja, Renata Gomes, 25 anos. Todos os sócios têm outros empregos, mas não deixam de investir na ideia. “O hambúrguer fica um pouco mais caro pela qualidade que o produto exige, como o molho artesanal e o pão, com uma gramatura (peso) maior”, explica Renata.

Thiago Boaventura ao lado da mulher e sócia, Dayene, e do pai: churrasquinho com carne marmorizada e linguiça artesanal

Por enquanto, só dá para pedir por telefone, mas uma loja deve ficar pronta em breve. “Ceilândia foi escolhida como sede da futura loja física porque as pessoas saíam daqui para ir ao Plano Piloto e a Taguatinga”, compartilha Amanda Pessoa, ao lado de Manuela Araújo, mulheres dos dois sócios do empreendimento e responsáveis pela comunicação da empresa. Um sanduíche sai entre R$ 17 e R$ 32. O combo, com bebida e batata frita, fica R$ 24 — tudo no delivery, que atende Ceilândia, Samambaia e Taguatinga.

E tem mais carne gourmet na esquina. Aquele churrasquinho de gato tão comum na cidade se transformou e a qualidade é tão grande que não pode ser mais relacionada ao felino. “Quando trabalhava como técnico de informática, fiz várias viagens. Uma delas foi para Minas Gerais. Foi lá que conheci o conceito dos espetinhos premium”, define Thiago Boaventura, 33, que decidiu abrir um restaurante com a mulher, Dayene Boaventura, 29. O produto dele é montado com carnes marmorizadas e macias e até linguiças artesanais, vendidas a um preço competitivo. “Tudo é feito na brasa e, em breve, lançaremos steaks e hambúrgueres artesanais”, anuncia Thiago.

Exigência

O chef Alex Sabino considera esse tipo de mudança no produto oferecido algo positivo. “Dá muita vazão para a gastronomia e faz com que o público fique mais exigente, porque começa a conhecer esse tipo de trabalho”, afirma. Sabino conta que os programas de culinária na TV contribuem para que as pessoas valorizem alimentos preparados com mais cuidado e com produtos de qualidade. “Isso faz com que o profissional seja mais exigido, tanto naquilo que ele vende, como no conhecimento de fornecedores e afins. As pessoas passam a entender mais do produto e, por isso, ficam mais exigentes”, explica.

“Hoje, em Ceilândia, o que era algo simples e que todos tinham acesso, como as comidas regionais das feiras, deu um jeitinho de cair no gosto de todas as camadas da sociedade”, completa o chef, que dá uma dica essencial para quem está começando e quer trabalhar com produtos gourmet: a empresa precisa ser pequena. “Se ela for grande, o produto pode ficar industrializado e perder o sabor. Aqueles que têm uma empresa pequena contam com o carinho, o olhar diferente para o produto”, afirma.

Paladar apurado

O advogado, político e gastrônomo francês Jean Savarin definiu o termo gourmet como “aquele que tem um paladar apurado”. Essa descrição surgiu em 1825, mas, com o tempo, a palavra se tornou sinônimo de comida boa, bem preparada. Desde o início dos anos 2000, também passou a significar a transformação de comidas do dia a dia em delícias da alta gastronomia. São, segundo o pesquisador Valter Palmieri Júnior, “versões mais luxuosas e caras de produtos tradicionais, oferecidas ao consumidor como uma forma simbólica de marcar diferenças sociais”. Ele descreve esse processo na tese de doutorado, apresentada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em A gourmetização em uma sociedade desigual: notas sobre a diferenciação do consumo de alimentos industrializados no Brasil, ele detalha que a tendência chegou ao Brasil em 2003, devido à ampliação da renda das famílias. “Houve ainda a valorização do salário mínimo, maior estruturação do mercado de trabalho, ampliação do crédito para o consumo, todos elementos importantes para iniciar esse processo de maior intensidade na diferenciação de produtos e de preços”, escreve no texto.

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