Por que a produção orgânica não resolve o desafio de alimentos mais saudáveis

É hora de olhar para onde pequenas mudanças podem fazer grandes diferenças: os milhões de hectares cultivados com as commodities agrícolas
Letícia Akemi/Gazeta do Povo

Grãos e leguminosas formam a base da alimentação humana

25/09/2017 | 17h21 | The Washington Post

O movimento pela produção saudável de alimentos enfrenta um sério problema: tem razão ao apontar o que está errado no sistema, mas se engana ao tentar propor uma solução.

Afinal, você deve estar se perguntando, o que é o tal movimento por produção de alimentos mais saudáveis?

Para o propósito desta discussão, vamos chamá-lo de uma coalizão de pessoas preocupadas com sustentabilidade e que clamam por uma produção mais focada no meio ambiente e na saúde humana.

Há muitos atores, muitas agendas, mas as questões-chave podem ser resumidas em alguns argumentos já conhecidos: para produzir e transformar soja em carne e em alimentos processados baratos, que nos engordam e nos deixam doentes, recorremos a um sistema de uso intensivo de agroquímicos que prejudica a biodiversidade, degrada o solo e polui a água.

Ainda que essas conclusões sejam discutíveis, é difícil negar o problema quando se olha para a Zona Morta do Golfo do México ou para o aumento inexorável dos índices de obesidade.

Como é possível resolver isso? Você já deve ter visto esses adesivos por aí: compre fresco, compre perto (buy fresh, buy local); apoie as pequenas propriedades, diversificadas e orgânicas, que abastecem feirinhas e restaurantes com vegetais frescos. É mesmo uma grande ideia. A agricultura local traz, de fato, uma série de benefícios, incluindo deliciosos morangos e um lembrete constante de que os alimentos precisam ser produzidos em algum lugar.

Mas não é possível abolir o sistema de uso intensivo de agroquímicos que prejudica a biodiversidade, degrada o solo, polui a água, etc. E não é por falta de confiança ou entusiasmo pelas pequenas propriedades. É simplesmente um reconhecimento de que existem razões econômicas, logísticas, topográficas e mesmo aritméticas para que essas pequenas propriedades sejam apenas fragmento de um sistema de produção de alimentos responsável.

Há pelo menos quatro razões.

Primeiro, essas propriedades não produzem a coisa certa. As colheitas, basicamente, são de frutas e verduras. Mesmo que todos fôssemos adeptos de uma dieta mais saudável, as frutas e verduras continuariam a ser apenas uma fração de nosso sistema agrícola. Os Estados Unidos possuem cerca de 400 milhões de acres de terras agrícolas, e apenas 4% produzem frutas e verduras (que o Departamento de Agricultura chama de “safras de especialidades”). Sei que parece repetitivo, mas se todos nos alimentássemos de frutas e verduras, teríamos de dobrar a área plantada. No entanto, não existe nenhum cenário realista em que a produção de frutas e verduras possa alcançar mais do que 10% das terras agrícolas. E não tem como 10% ser a solução.

Essas propriedades, por outro lado, não estão aptas para colher a coisa certa.

A razão pela qual produtores locais, pequenos e diversificados, plantam frutas e verduras (e às vezes criam gado) é que essas são atividades com maior margem de lucro.

Economia de escala

O tapete verde que cobre vastas faixas do meio-oeste americano não pode ser reproduzido com sucesso em pequenas propriedades, porque é preciso economia de escala para tornar essas plantações lucrativas. O formidável sobre culturas como aveia, lentilha, cevada e, sim, milho e soja, é que elas produzem grandes volumes por hectares de alimentos nutritivos e baratos. (Claro, quando você as transforma em comida processada, em etanol e ração animal, perdem-se algumas dessas vantagens). É difícil plantar grãos em pequena escala porque seria preciso cobrar muito caro para manter o negócio funcionando, e uma das principais virtudes dessas culturas é justamente sua viabilidade econômica.

Outro ponto: os solos estão no lugar errado.

Olhe para o mapa e veja onde estão as terras agricultáveis e onde estão as pessoas. Os pontos não se cruzam. No nordeste dos Estados Unidos, por exemplo (do Maine até Washington): ali estão 3% das terras e cerca de 20% da população. Em contraste, as planícies do norte (Dakota, Kansas e Nebraska) tem 24% da terra e apenas 2% da população. Não é que a terra esteja distribuída de forma desigual. Há um problema quando se tenta plantar alimentos perto das pessoas que serão alimentadas. Quanto maior a concentração da população, mais caras são as terras. Mesmo se houvesse enormes áreas para cultivar alimentos, elas provavelmente teriam preços proibitivos.

E tem a sazonalidade das safras.

Na maior parte do país, os alimentos produzidos localmente estão disponíveis por um breve período de tempo. Não se trata apenas de uma falha na visão romântica de uma agricultura supostamente feita em um mosaico de pequenas propriedades. Estamos falando de uma das principais razões para as safras serem cultivadas em grandes propriedades: os grãos e leguminosas são, e sempre foram, a base da alimentação humana. Eles podem ser estocados. Colha em setembro, coma em junho, ou talvez junho do ano que vem, ou, ainda, em junho do outro ano.

Milho por brócolis?

Ainda que o impacto maior nos seres humanos e no meio ambiente venha da parte industrializada da pirâmide alimentícia, a solução não é substituir o industrializado pelo não-industrializado, o milho pelo brócolis. A saída é focar nos grãos e leguminosas que têm escala: cultivá-los melhor e incorporá-los completamente à nossa dieta.

Atualmente, o selo orgânico tem se apresentado como única alternativa ao alimento industrializado. Em alguns pontos, a agricultura orgânica realmente tem vantagem ambiental sobre a agricultura convencional, mas a propaganda tem focado mais no discurso “natureba” do que na minimização do impacto ao meio ambiente.

Ainda que a produção orgânica favoreça a saúde do solo, com maior fixação de carbono, os sistemas convencionais alcançam colheitas mais expressivas e podem mais facilmente reduzir a necessidade de revolver este solo (através do plantio direto), o que favorece a retenção de água e evita a erosão dos nutrientes. E como a erosão é responsável tanto pela degradação da saúde do solo como pela poluição das águas, como no caso da zona morta do Golfo do México, esta é uma vantagem considerável.

Se a produção local e orgânica é apenas uma parte limitada da solução, como deveria então ser um sistema responsável de produção de alimentos?

A pergunta foi feita a Tim Griffin, director do Programa de Agricultura, Alimentos e Meio Ambiente da Escola de Ciências da Nutrição da Universidade de Tufts. Ele respondeu, por e-mail: “ter um sistema de produção de alimentos em múltiplas escalas é melhor do que ter apenas um tipo predominante (seja pequeno ou grande)”. O plantio de grãos não é inerentemente menos sustentável do que o cultivo de frutas e verduras, diz Griffin, mas seria interessante ver um sistema em que as propriedades pudessem tirar vantagem da economia de escala sem produzir uma paisagem homogênea.

Suzy Friedman, diretora do Fundo de Defesa do Meio Ambiente, também vê um papel relevante para “propriedades de todos os tamanhos e com diversos métodos de produção”. Um sistema de produção responsável deve incorporar métodos de conservação que fazem sentido dentro do modelo adotado. Suzy diz que o foco está em buscar inovação e ferramentas de precisão para adubação e controle de pragas, por exemplo, com medição confiável dos resultados entregues aos produtores. Algo possível pela cooperação na cadeia alimentar e por políticas que promovam, em vez de desencorajar, as práticas sustentáveis.

Em geral, os especialistas falam sobre um modelo de sustentabilidade que envolve todos os tamanhos de propriedade e tipos de alimentos, em que aquilo que é local e orgânico tem um papel importante, mas, necessariamente, pequeno.

Tomates vermelhos

Michael Rozyne cumpre este papel. Ele é o fundador da Red Tomato, um distribuidor de alimentos de Massachusets que conecta pequenos e médios produtores de frutas e verduras a cadeias de supermercados. Ele entende que o esforço por um sistema mais aperfeiçoado tem de estar nos produtores e suas práticas, não no rótulo. Rozyne está otimista de que os consumidores se movem nesta direção. “Eles percebem que o assunto é mais complexo do que imaginavam, que não precisam se agarrar apenas ao que lhes disseram ser seguro comer”.

Se você é um consumidor, é difícil olhar além dos rótulos, porque, em muitos casos, não há rótulo na verdade. Tudo é local e orgânico. Deveria ser prioridade do movimento pela alimentação saudável ir além desta pequena parte da solução.

Como? É hora de mudar o foco. A conversa sobre “alimento local e orgânico” já se espalhou o bastante. Continuar a bater nesta tecla apenas radicalizará a ideia de que esta é a única solução, e isso vai contra as chances de avançar mais. É preciso olhar para onde pequenas mudanças podem fazer grandes diferenças: os milhões de hectares cultivados com commodities agrícolas.

Muitos produtores veem o impacto ambiental como assunto prioritário e estão implementando práticas para melhorar a saúde do solo, reduzir a perda de nutrientes e reter água. Temos que começar a pensar como os consumidores podem usar seu poder de compra para apoiar esses agricultores. É um desafio e tanto, por que envolve também grandes companhias que são fornecedoras e compradoras destes produtores, algumas inclusive rotuladas como inimigas do meio ambiente e da saúde pública. Mas o primeiro passo tem de ser o reconhecimento – em alto e bom som – de que a produção local e orgânica não pode resolver o problema.

O movimento por alimentos mais saudáveis levou os consumidores a olhar para os problemas do sistema. Está na hora de focar na sua resolução.

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