29 de junho de 2017, 10h20
Por Felipe Luchete
Por violar a garantia da proporcionalidade, é inconstitucional norma que fixa pena mínima maior que a prevista para crimes mais graves. Assim entendeu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, nesta quarta-feira (28/6), ao derrubar dispositivo do Código Penal que fixa pena de 10 a 15 anos de prisão para quem falsifica, adultera importa, vende ou distribui medicamentos sem registro, inclusive cosméticos.
A regra está no artigo 273 e foi criada pela Lei 9.677/1998, na mesma época da descoberta de que uma empresa farmacêutica produziu “pílulas de farinha” no lugar de anticoncepcionais. A solução do Congresso foi impor punição dura para novas situações, definindo tais práticas como crime hediondo. O problema, segundo desembargadores do tribunal, é que a norma se aplica até para quem vende xampu adulterado.
O caso levado à corte envolve um dono de academia de musculação condenado a 10 anos de reclusão, em regime fechado, por aplicar anabolizantes dentro do estabelecimento. O processo transitou em julgado, mas a Defensoria Pública pediu revisão criminal em 2014. No ano seguinte, o 8º Grupo de Direito Criminal acabou reduzindo a pena para 2 anos e 6 meses, podendo ser substituída por restritiva de direitos.
O colegiado aplicou, por analogia, norma sobre tráfico de drogas. Além disso, encaminhou ao Órgão Especial a discussão sobre a validade da lei de 1998 — a corte tem poder para fazer o controle difuso de constitucionalidade. O processo entrou na pauta em maio, mas só foi retomado nesta quarta.
Em sustentação oral, o defensor público João Henrique Imperia Martini declarou que o artigo 273 exagera ao estabelecer os 10 anos como piso, quando crimes mais graves têm penas menores: ele citou roubo a mão armada (5 anos e 4 meses), homicídio simples (6 anos), estupro (6 anos), estupro de vulnerável (8 anos) e extorsão mediante sequestro (8 anos), por exemplo.
Martini, que coordena o Núcleo Especializado de Segunda Instância e Tribunais Superiores da Defensoria, disse que não pedia a descriminalização de condutas irregulares e medicamentos, mas uma adequação do que “talvez” seja o dispositivo “mais desproporcional” do Código Penal. A correção da norma, segundo ele, não afasta a necessidade de se analisar a lesividade da conduta de cada caso concreto.
O Ministério Público de São Paulo assinou parecer contra o pedido, considerando grave a conduta do acusado no fornecimento de anabolizantes. Para a Procuradoria-Geral de Justiça, o Poder Judiciário não poderia afastar o dispositivo questionado, sob pena de invadir a competência do Legislativo. Já a Defensoria respondeu que o controle de constitucionalidade é aplicado em todos os tribunais.
Morte do réu
Uma controvérsia jurídica envolvia o julgamento do tema: o relator, desembargador Xavier de Aquino, afirmou a princípio que o caso não deveria ser julgado porque o réu morreu em 2014, ficando extinta a punibilidade. A Defensoria alegou que a constitucionalidade do dispositivo deveria ser analisada mesmo assim, pois interessa a vários processos sobre o mesmo assunto.
A maioria da corte seguiu esse entendimento e, no mérito, Aquino afirmou que o legislador fixou punições “absurdas”, em desacordo com a periculosidade dos agentes. O desembargador Márcio Bartoli também declarou que não faz sentido prender por dez anos quem adultera xampus. Segundo o desembargador Moacir Peres, a lei tem como resultado o “furor” gerado pela história das pílulas de farinha. O acórdão ainda não foi publicado.
Em 2015, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça já havia definido como “exagero” a conduta inscrita no artigo 273, § 1º-B, do Código Penal. Para o colegiado, “a indispensabilidade do dano concreto à saúde do pretenso usuário do produto evidencia ainda mais a falta de harmonia entre o delito e a pena abstratamente cominada (…) se comparado, por exemplo, com o crime de tráfico ilícito de drogas – notoriamente mais grave”. Por analogia, os ministros aplicaram no caso concreto o tráfico (AI no HC 239.363/PR).
* Texto atualizado às 11h do dia 29/6/2017 para acréscimo de informação.
Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 29 de junho de 2017, 10h20