Como Blumenau virou referência em ensino e produção de cervejas especiais

Surgimento das duas principais cervejarias de Santa Catarina fez cidade do Vale do Itajaí assumir a vocação para o setor e chegar ao topo do Brasil em formação e fabricação da bebida

Até 2002, pouco se sabia sobre cervejas especiais no Brasil. Nas gôndolas de supermercado em Blumenau, latas e garrafas de marcas populares imperavam, enquanto o consumidor buscava quase que exclusivamente o preço mais barato. Beber era o objetivo. Apreciar o sabor e as características de cada bebida era realidade para poucos. É em meio a esse contexto que se inicia na cidade um período de transformação econômica. As prateleiras repletas de cervejas simples – por vezes vendidas a menos de R$ 1 – começam a receber naquele ano novos estilos e cores com a criação da Eisenbahn. Um ano depois é a vez da Bierland aparecer e oferecer uma nova opção de chope, muito além de rótulos nacionais conhecidos. As duas empresas blumenauenses criavam uma concorrência responsável por desenvolver um nicho que, anos mais tarde, traria à cidade uma aptidão até então adormecida. E o rótulo de Capital Nacional da Cerveja.

As lagers americanas – cervejas mais leves – deram lugar a outras opções, mais pomposas, com uma variedade quase infinita de possibilidades, aromas e sabores. Gradativamente, enquanto ganhavam o mercado nacional e potencializavam os lucros, as duas cervejarias foram conquistando o paladar do blumenauense. A partir daí os negócios deslancharam e passaram a desenrolar um período que se estende até hoje em que a cidade percebe – com o pano de fundo da Oktoberfest – uma vocação para fazer e vender cervejas de qualidade. Uma conjuntura que vai da produção de malte, à formação de mestres cervejeiros em sala de aula. Tudo desencadeado no início dos anos 2000.

Fundador da Eisenbahn, o empresário Juliano Mendes conta que o mercado das cervejas artesanais em Santa Catarina era muito restrito e o movimento no Brasil era lento: apenas a Baden Baden, em Campos do Jordão (SP), e a Colorado, em Ribeirão Preto (SP), investiam para oferecer alternativas ao consumidor. Na opinião de Mendes, o impulso para a cervejaria foi desbravar mercados em que as paulistas não entravam. Era, digamos, o ciclo do ouro do setor no Brasil, onde a empresa precisou ter o perfil de um bandeirante do século 16 para encontrar riquezas.

– Fomos sozinhos ganhando o mercado brasileiro, já que éramos os primeiros a ir com mais força em redes, sem medo de desbravar e abrir portas. Foi justamente por entrarmos em mercados importantes que ganhamos respeito, e aí tudo ficou mais fácil até para termos espaço em Blumenau e região – conta Mendes, que vendeu a empresa ao Grupo Schinchariol em 2008. No ano passado, a empresa voltou a ser objeto de transação financeira, passando a pertencer à Heineken.

A colocação de novos rótulos para o consumidor e o crescimento exponencial a partir de 2005 despertou o interesse cervejeiro em Blumenau. Naquele ano a cidade sediou o 1º Grande Festival Brasileiro de Cerveja, embrião para o Festival Brasileiro da Cerveja, que viria em 2009 e consolidaria a cidade perante os grandes nomes do mercado no país. A 10ª edição do festival inicia na próxima quarta-feira, com a participação de mais de 100 cervejarias e mais de 800 rótulos à disposição do público.

Um dos sócios da Bierland, Rubens Deeke, avalia que esse caminho aberto para outros investimentos na cidade só foi possível graças à concorrência e à corrida pelo consumidor entre as duas marcas que, até então, predominavam na cidade:

– Uma coisa é você estar sozinho, outra é ter uma concorrente que te empurra e faz com que você queira crescer. Não tenho dúvida que esse desenvolvimento do ramo em Blumenau só se deu porque ambas (Bierland e Eisenbahn) queriam estar no mercado.

Tudo começa com o malte
Rodolfo Rebelo segura na mão direita um pequeno grão de malte germinado, símbolo do início de todo esse setor econômico na cidade. Fundador da Maltearia Blumenau – a primeira micromaltearia do Brasil –, o engenheiro químico e mestre malteiro produz aquele que é um dos principais insumos para as cervejarias da região. São 12 toneladas dos mais diferentes estilos do produto feitas mensalmente, direcionadas para empresas e também para o caseiro.

Rebelo conta que a empresa surgiu por oferta e procura: percebeu a necessidade de ofertar maltes especiais à demanda do Vale. A partir dali se desenvolveu e passou a mirar horizontes que vão além de Santa Catarina.

– Hoje falta apenas o Radar (registro necessário para exportação) para que possamos entrar em mercados da América do Sul, como o Peru e Uruguai – comemora Rebelo, ao projetar a ampliação do potencial produtivo da empresa.

Desafio das cervejarias é não disputar o mesmo público

É impossível contar nos dedos das mãos as cervejarias em Blumenau: já são 11 as opções para o público. Na avaliação do empresário Davi Zimmermann, diretor comercial da Alles Blau – a mais nova da turma e que vai estrear este ano no Festival Brasileiro da Cerveja –, o desafio é evitar a disputa pelo mesmo nicho de mercado e focar nas pessoas que ainda não consomem cervejas especiais:

– Blumenau é uma grife e aqui existe uma sinergia interessante entre investidores, mercado, consumidor e poder público, o que incentiva esse processo. Nosso desafio é difundir para o grande público o hábito de consumir a cerveja artesanal e quanto mais conseguirmos fazer isso, mais espaço ganharemos.

Rubens Deeke, da Bierland, destaca que é preciso ter ousadia. Na avaliação dele, o público mais amplo que compra cervejas artesanais vai querer pagar menos e ao mesmo tempo ter um produto de qualidade para degustar, o que motiva a necessidade de ampliar o mercado, sem disputar o mesmo público no Vale. Essa é a receita que deixou o gráfico ascendente na Cerveja Blumenau. Com o nome do município no rótulo, em menos de dois anos a empresa passou de uma ideia para pontos de venda em 25 estados no país.

– As cervejarias da cidade têm que olhar com a mesma proposta, de oferecer qualidade no produto, no serviço, em algo que envolve toda a logística, e ultrapassar as barreiras regionais – argumenta Valmir Zanetti, sócio da Cerveja Blumenau.

Mercado direcionado aos também caseiros ganha espaço
O boom dos cervejeiros caseiros no Brasil teve reflexos também em Blumenau. A cidade passou de 50 pessoas que faziam a bebida em casa em 2012, para ao menos 600 até o fim do ano passado, crescimento de 1.200%, conforme dados das lojas na cidade que vendem insumos. É justamente o fato de existirem comércios focados em vender equipamentos e ingredientes para fazer cerveja (são três em operação no município) que alavancou o interesse da população pelo hobbie.

Escola, festivais e eventos consolidam o setor
Ao perceber a crescente do mercado na região, Carlo Enrique Bressiani virou a chave do Instituto de Administração e Direção de Empresas (Iade) para, em 2014, transformá-lo em Escola Superior de Cerveja e Malte. Pioneiro no ensino das questões que envolvem a cultura cervejeira na América Latina, ele encontrou uma lacuna em Blumenau. De lá para cá, já formou pelo menos 110 mestres cervejeiros e matriculou 6,3 mil alunos em dezenas de cursos diferentes. Tudo atrelado à marca que a cidade tem, o que atraiu estudantes de todos os estados do Brasil e de oito países – até do Cabo Verde, país africano que também fala português.

– Pegamos uma onda que já existia, e ajudamos a torná-la maior ainda – destaca Bressiani.

Com dezenas de cursos, que vão da análise laboratorial de produtos a workshops de degustação de cerveja, a escola se aprofundou e passou a colocar no mercado profissionais com condições de trabalhar nas cervejarias, ou até fundá-las, como em alguns casos.

Outros segmentos ainda compõem a Capital Nacional da Cerveja – rótulo dado a Blumenau em março do ano passado – e fazem a cidade honrar o título. O Festival Brasileiro da Cerveja, que inicia na próxima quarta-feira, é o principal da América Latina e traz consigo outros dois dos mais importantes eventos do setor no país: a Feira Brasileira da Cerveja (voltada exclusivamente para profissionais), e o Concurso Brasileiro da Cerveja (que premia os melhores do Brasil em cada estilo). São as cerejas do bolo de um setor consolidado e que ainda está em evolução e que, conforme o secretário de Desenvolvimento Econômico, Moris Kohl, precisa ser fomentado.

– Esse segmento está cada vez mais organizado, com tecnologia, inovação e educação. Isso estimula aqueles que têm interesse em se desenvolver. O município tem a missão de fomentar, fortalecer, articular e promover o setor, e até o fato de não atrapalharmos com entraves já é um começo – sustenta Moris.

Indústria busca desenvolver maquinário
Uma ação organizada pelo Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e do Material Elétrico de Blumenau (Simmmeb) e a Escola Superior de Cerveja e Malte capacitou 20 empresas durante o último ano com o objetivo de colocar a cidade em condições de fabricar equipamentos para cervejarias. O que antes era ignorado, passou a ser entendido como um potencial para aumentar o faturamento. Na Feira Brasileira de Cerveja do ano passado, nenhum expositor era blumenauense. Neste ano, são 14.

– É um trabalho que tornamos constantes, com um grupo que se reúne periodicamente para discutir possibilidades para esse mercado, com tudo que a indústria metal-mecânica tem capacidade de produzir. Estamos evoluindo mais rapidamente do que imaginávamos e isso já é uma realidade para o setor – comemora o diretor executivo do Simmeb, Maurício Rossa.

Até o ano passado, empresários buscavam em indústrias da Serra Gaúcha e Minas Gerais a solução para tudo que envolvia tecnologia e equipamentos cervejeiros. Hoje, Blumenau também está inserida neste mercado, o que fecha um ciclo econômico do setor e a coloca como um polo industrial cervejeiro no leque de opções à cidade.

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