Como uma desconhecida cervejaria da Costa Rica virou referência mundial no bom uso de recursos naturais – e ainda dobrou de tamanho depois de adotar práticas sustentáveis
23/08/2017 – 06h45 – Atualizada às 08h20 – POR
Na escola de negócios europeia Insead, uma das mais prestigiadas do mundo, o professor Subi Rangan entrega aos alunos, desde 2014, um “case” de 11 páginas para ensinar aquilo que muitos ainda consideram blá-blá-blá: como fazer dinheiro e, ao mesmo tempo, o bem para o meio ambiente e a sociedade. Se o tal case fosse de uma empresa sediada na Europa, região que concentra as multinacionais mais sustentáveis do mundo, a história talvez não surpreendesse tanto. Mas não. A empresa que inspirou o professor Rangan vem do terceiro menor país da América Central, a Costa Rica, onde a população não chega a um terço da cidade de São Paulo. É lá, precisamente na cidade de Heredia, que está baseada a Florida Ice Farm & Co., companhia de bebidas e alimentos com receita de US$ 1,2 bilhão que investe 8% de seu lucro em ações sociais e ambientais (algo incomum até entre as grandes empresas europeias). “O que eles fazem é referência mundial”, diz Rangan.
Reconhecida pelo Boston Consulting Group como uma das “novas campeãs em sustentabilidade”, a empresa, desde 2009, ataca problemas que variam da fome à falta de água potável. Com a Nutrivida, empreendimento elaborado em parceria com a Yunus Negócios Sociais (do economista Muhammad Yunus, Nobel da Paz), a companhia produz sopas, cereais e bebidas em pó para crianças subnutridas – parte da venda é feita por mães, porta a porta. Internamente, ela promove a educação financeira dos empregados, para que gastem seu salário de forma consciente. Nas praias, funcionários e até os próprios acionistas se dedicam à retirada de lixo. Mas isso é só um pedaço da dezena de ações de impacto positivo elaboradas pela companhia costa-riquenha.
A mais recente delas dá a dimensão do rigor técnico. Em março, a empresa anunciou que uma das 13 cervejas que produz, a Imperial – a mais consumida na Costa Rica – se tornou “água positiva”. Foi a primeira companhia a assumir que tem uma cerveja assim no mundo. Na prática, isso significa que a quantidade de água que a empresa devolve ao meio ambiente é maior do que a que ela gasta para produzir a cerveja. A cada 17,32 litros tomados dos rios da Costa Rica para fabricar 350 ml do produto, a empresa devolve 19 litros. Como? Primeiro – e é aí que está o mérito da coisa – é preciso entender como ela descobriu que são consumidos o equivalente a 70 copos de requeijão cheios de água na produção de uma só unidade do produto. Não foi um processo simples. Muito menos, rápido. A companhia teve de se meter na conta dos outros. Passou a medir, com a ajuda de softwares sofisticados, o consumo de água nas instalações dos seus 35 principais fornecedores. Aí entram os produtores de lúpulo, malte, os fabricantes de garrafas de vidro, etiquetas…
Não houve imposição. A intromissão se deu de forma paulatina e levou, aliás, longuíssimo tempo. Foi um trabalho de formiguinha. “Trata-se de um processo de convencimento, iniciado em 2010, em que mostramos a eles, em conversas e testes, que a medição não traria apenas benefício ambiental, mas econômico também, como redução nas contas de água e energia”, explica Gisela Sánchez, diretora de relações corporativas da Fifco (acrônimo para Florida Ice Farm & Co.).
O esforço no didatismo faz um baita sentido. Foi por conta dessa medição que a companhia descobriu que os fornecedores de suas matérias-primas consomem nada menos que 15,75 litros de água para cada long neck. É a parte mais sedenta de toda a cadeia de valor da cerveja – essa quantia corresponde a 89% do gasto total. O resto está dividido entre o consumo dentro da fábrica (com lavagem de garrafas, por exemplo) e nos pontos de venda e distribuição – sim, a aguinha que limpa o chão do boteco também entrou na conta.
Convergência
Para compensar o “estrago”, a empresa tomou três providências: construiu aquedutos para levar água potável a comunidades pobres da Costa Rica, implantou coleta de água de chuva em escolas e protegeu áreas verdes situadas no entorno de bacias hidrográficas. Esta última ação, sozinha, responde por 18,9 litros. E aqui vale abrir um parêntese para esclarecer como funciona essa história de as empresas saírem adotando florestas por aí. No discurso, parece qualquer coisa. Mas a conservação bem-feita – nas bacias de onde você extrai a sua água – faz a diferença, sim. Cuidar das matas ciliares (que estão ao longo do curso do rio) contribui para a recarga dos lençóis freáticos. Preservar a vegetação significa garantir a infiltração da água da chuva no solo. A Coca-Cola Brasil, por exemplo, faz conservação e reflorestamento de uma área equivalente a 100 mil campos de futebol no Brasil.
Faz sentido que seja assim. “Se as áreas verdes são o que garante a vida de seu principal insumo, protegê-las é uma questão de sobrevivência do negócio”, diz o professor Marcus Nakagawa, coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento Socioambiental. Claro que, isolada, essa ação não é sinal de responsabilidade ambiental. Medir e reduzir o consumo dentro de casa são tarefas que devem vir em primeiro lugar. Os grandes players mundiais sabem bem disso. Ninguém precisa ensinar a uma Ambev ou a uma Coca-Cola que essa prática é sinal de mais dinheiro no caixa. Afinal, é mandatório gastar menos água dentro das fábricas. O que não é obrigação (já que não provoca impacto direto nos resultados financeiros de nenhuma companhia) é evangelizar o fornecedor e medir o consumo nas instalações dele, como feito pela empresa costa-riquenha. Em escala menor, a Coca-Cola começou a fazer isso recentemente no Brasil. Em parceria com a startup Agrosmart, a companhia está monitorando o cultivo de 17 produtores de goiaba em São Roque do Canaã, no Espírito Santo. O problema atacado: muitas vezes, o pequeno agricultor não tem a noção exata da quantidade de água que tem de usar na sua plantação. Dependendo das condições ambientais – chuva ou umidade –, o nível de irrigação é diferente. A meta da Coca é que os fazendeiros alcancem 30% de eficiência na irrigação. “A ideia é replicar isso em toda a nossa cadeia produtiva de agricultura”, diz Pedro Massa, diretor de valor compartilhado da Coca-Cola Brasil.
Quem também busca entender melhor o consumo de água na produção das matérias-primas é a Ambev. Recentemente, um comitê de especialistas em água formado pela empresa teve a ideia de criar uma plataforma online de gestão de uso da água, a SAVEh (Sistema de Autoavaliação de Eficiência Hídrica), para o público externo. “Estamos convidando nossos fornecedores a usá-la”, diz Beatriz Oliveira, gerente corporativa de meio ambiente da Ambev.
Não é só uma gentileza. No fim das contas, o interesse na gestão da água de toda a cadeia acaba sendo econômico também. Acontecimentos como seca, inundações, aumento do estresse hídrico e poluição custaram US$ 14 bilhões às empresas no mundo em 2016, segundo o Carbon Disclosure Project (CDP). E o Banco Mundial prevê que o produto interno bruto (PIB) caia, em algumas regiões, 6% até 2050 em razão do aumento da disputa pela água. Os países mais quentes seriam os mais afetados. Saber que seu fornecedor usa bem esse recurso natural e que ele terá condições de seguir sendo seu fornecedor, sem passar por “apuros hídricos”, não é legal?
Por ora, na Fifco, apenas a cerveja Imperial tem a cadeia de valor monitorada e compensada em nível acima da condição de neutralidade. Mas, até 2020, a companhia pretende fazer o mesmo com mais seis marcas que detém, entre elas as cervejas saborizadas Seagram’s e os sucos Tropical. Para monitorar os avanços, a companhia criou uma metodologia própria para medir, entre outras coisas, a pegada de água, a pegada de carbono e o impacto social de cada uma. Agora, a empresa está compartilhando sua ferramenta (batizada de Brand Sustainability Index, ou Índice de Sustentabilidade de Marca) com o mercado. “Estamos dividindo o conhecimento com instituições como Ellen MacArthur Foundation, de economia circular, e ISO (Organização Internacional de Normalização), na tentativa de estimular a criação de mais normas para essa área de sustentabilidade, que ainda carece de regras”, diz Gisela Sánchez, da Fifco. “Isso, essa troca de informações com terceiros, significa ir de uma mentalidade de compliance para uma mentalidade de contribuição”, afirma o professor do Insead Subi Rangan. Não existem ainda certificações universais que garantam a condição positiva da compensação ambiental, por exemplo, nem no caso da água nem no do carbono.
O aumento da disputa pela água pode fazer o PIB recuar 6% até 2050 em algumas regiões do planeta, segundo o Banco Mundial”
Tantas ações positivas fazem pensar que a Florida Ice sempre foi exemplo de companhia que quer e batalha pelo melhor dos mundos, correto? Só que não é bem assim. Aliás, o quadro era alarmante dez anos atrás. Estima-se que a empresa gastava 14 litros de água para produzir 1 litro de bebida. Além disso, iniciativas como reciclagem e campanhas em torno do consumo moderado de álcool – práticas comuns na indústria de bebidas – estavam longe, bem longe de ser uma real preocupação do grupo.
O ponto de partida para a mudança ocorreu em outubro de 2008, quando o presidente da Fifco, Ramón Mendiola, comemorava os resultados financeiros da companhia, com mais oito executivos, em uma praia no norte da Costa Rica. O grupo ria à toa. Tinha motivo. Os cinco anos anteriores haviam sido de reviravolta. Mendiola, ex-Kraft Foods e ex-Philip Morris, havia levado a empresa de volta ao lucro e à competitividade, missão que ele assumiu em 2003. Funcionou. As vendas e os índices de lucratividade mais que dobraram apenas entre 2006 e 2008. Diante desse quadro, o que esperar das próximas metas? “Ramón, nós vamos triplicar o negócio agora?”, perguntou um dos executivos, na praia. “Sim, mas de um jeito diferente”, respondeu o presidente.
Nos três dias seguintes, Mendiola explicou que, dali em diante, a estratégia da empresa estaria toda baseada no tripé da sustentabilidade (o “triple bottom line”), que mede os resultados da empresa em termos sociais, ambientais e econômicos (o trio conhecido pelos três Ps – people, planet and profit). A inspiração veio, segundo Mendiola, do magnata suíço Stephan Schmidheiny, um conhecido filantropo e ativista ambiental que aprendeu com os erros da própria empresa. (O grupo Eternit, companhia herdada do pai, usava o material cancerígeno amianto para fabricar telhas e caixas d’água. Schmidheiny vendeu a companhia no início dos anos 90 e acabou tornando-se um propagador da administração consciente. Em 2003, ele passou todo o controle acionário de sua holding de silvicultura Grupo Nueva, baseada na Costa Rica, a uma fundação filantrópica com atividades na América Latina.)
Mas os planos para o tripé não foram baseados em pura admiração. Mendiola e Gisela Sánchez (ambos com MBA da Kellogg School of Management, dos Estados Unidos) estudaram dados de centenas de pesquisas relacionadas a questões éticas e ecológicas envolvendo não só a Fifco, mas várias outras empresas. Também coletaram insights de ONGs, acionistas, clientes, fornecedores…
Implementar esse novo conceito não foi simples. Pense na mentalidade de uma empresa fundada em 1908… “Era necessário convencer o conselho de que essa nova forma de fazer negócios não ia tirar a atenção dos executivos para as metas comerciais e financeiras”, disse Mendiola a Época NEGÓCIOS. “Foi desafiador.” Mas o conselho topou. Desse momento em diante, 60% da remuneração passou a ser atrelada a metas econômicas e 40% a metas sociais e ambientais.
De 2009 até 2016, a receita da empresa cresceu 139%, e os lucros bruto e operacional subiram, respectivamente, 113% e 90%. Algumas empreitadas ocorridas no período podem ter colaborado para isso, como a aquisição da cervejaria americana North American Breweries (NAB) pela Fifco em 2012, que ampliou o catálogo de ofertas da empresa com mais oito rótulos. Nesse intervalo, a empresa também passou a investir em outras frentes, como a distribuição de vinhos e destilados importados (Concha y Toro e Johnnie Walker entre eles). Diversificação, aliás, andou junto com o tripé sustentável nos últimos anos. O grupo ainda comprou uma rede de padarias e lançou uma marca de leite. Nada de muito assustador para um grupo já tão diverso. Além da divisão de cervejaria, da qual a Heineken é dona de 25% (o resto é da Fifco), a companhia tem negócios imobiliários e um braço que investe em fabricantes de envases. Suas operações estão espalhadas por Costa Rica, El Salvador, Guatemala e Estados Unidos.
A complexidade do negócio somada aos compromissos ambientais e sociais, como os números indicam, não impediram o crescimento do negócio. E foi exatamente isso que Mendiola veio mostrar a um grupo de 20 CEOs brasileiros, em março, na Fundação Dom Cabral, em Belo Horizonte. A mensagem, ninguém duvida, é bonita. Mas quem topa colocá-la em prática? “Se eu chegar para os acionistas com essa ideia social, nenhum vai dizer que não é relevante olhar essas questões, mas uma coisa é concordar e outra é estar disposto a colocar a empresa para executá-la”, disse um dos executivos.
Ter a estratégia baseada em sustentabilidade, realmente, não é para qualquer um. Exige visão de longo prazo e muito planejamento. Em 2010, a Unilever – referência no assunto – estabeleceu metas para dali a 20 anos. A empresa se comprometeu a reduzir à metade a pegada ambiental na fabricação e uso de seus produtos até 2030.
“Acho que os investidores convencionais, mais conservadores, não olham muito para o tripé da sustentabilidade”, diz Theo Van der Loo, presidente da Bayer Brasil. Ele também assistiu à apresentação da companhia costa-riquenha. “Mas os novos investidores, e os que estão por vir, vão se importar com isso, sim. Daí a necessidade de todos nós discutirmos esse tema.”
Um estudo da Business Commission – grupo internacional de líderes empresariais e da sociedade civil – revela que modelos de negócios sustentáveis tocados por grandes empresas poderiam gerar um ganho de até US$ 12 trilhões para a economia. A Florida Ice Farm & Co., em um dos menores países da América, é só um pontinho no meio disso tudo. Mas por que não replicar suas ideias?
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