Ao pôr em prática um projeto de reestruturação que leva o nome do corredor jamaicano, o Carrefour cresce e consolida a liderança do mercado brasileiro
Por Maria Luíza Filgueiras
24 ago 2017, 05h38
São Paulo — Em abril de 2014, poucos meses depois de ter deixado o Grupo Pão de Açúcar, o empresário Abilio Diniz enviou um emissário a um jantar em São Paulo com Georges Plassat, então presidente global da rede de supermercados Carrefour. Abilio e Plassat se conheciam desde 2011, quando o empresário brasileiro fez uma tentativa frustrada de fundir as duas empresas no Brasil, ideia vetada pelo novo controlador do Pão de Açúcar, o varejista francês Casino. No jantar na casa do banqueiro Pércio de Souza, dono da assessoria financeira Estáter, Plassat propôs a Abilio que assumisse o Carrefour Brasil.
O empresário já vinha comprando ações do Carrefour na França — o plano era ter papéis suficientes para exercer alguma influência na gestão global da rede. Depois de quase um ano de negociações, em fevereiro de 2015 Abilio assumiu a presidência do conselho de administração da rede no Brasil e ganhou um assento no conselho da matriz. Sua missão: preparar a operação brasileira para a abertura do capital — que aconteceu em julho deste ano — e usar os recursos para distanciar a empresa da rival Pão de Açúcar em tamanho e rentabilidade.
Parte do plano já saiu do papel. As ações do Carrefour Brasil começaram a ser negociadas em julho. O preço inicial foi baixo: ficou em 15 reais, no piso da estimativa dos bancos contratados para fazer a operação. Mas a empresa vale 29 bilhões de reais, o que corresponde à metade do valor global do Carrefour, ainda que a participação brasileira nas vendas totais não chegue a 20%. O Pão de Açúcar fatura 8% menos e vale quase 30% menos na bolsa (excluindo as receitas da Via Varejo).
Já em 2015 o Carrefour passou o concorrente e se tornou a maior rede de supermercados do país. A rentabilidade também é maior — a margem de geração de caixa é de 7,5%; e a do Pão de Açúcar, de 5,3%. A meta não declarada da nova gestão, segundo pessoas próximas, é fazer o Carrefour Brasil valer tanto quanto o Carrefour global.
EXAME apurou que, para conseguir isso, o Carrefour, presidido no Brasil pelo francês Charles Desmartis, e a Península, empresa de investimentos de Abilio, criaram o Projeto Bolt, numa referência ao atleta jamacaino Usain Bolt, maior velocista da história. Foi traçada uma nova estratégia para a empresa e um plano para colocá-la em prática de forma rápida — daí a referência meio óbvia a Bolt.
A avaliação era que somente o Atacadão, marca de “atacarejo” do Carrefour comprada em 2007, já funcionava a pleno vapor. Era possível, na análise da equipe, melhorar a atuação dos supermercados, dos hipermercados, do banco e da divisão imobiliária. Apenas no primeiro ano o grupo teria de cortar centenas de milhões de reais em gastos e aumentar a produtividade das lojas para retomar a primeira posição no ranking de supermercados.
Ambos os objetivos foram cumpridos. Até março de 2018 a meta é aumentar a margem da geração de caixa em 5 pontos percentuais no segmento de varejo — o plano original da matriz era de alta de 0,5 ponto. Até agora o crescimento foi de 3 pontos percentuais, para 6%.
A Península indicou seis executivos para a operação, sendo dois vice-presidentes, o comercial e o de recursos humanos. Também foram criados comitês de estratégia, recursos humanos e auditoria, além de um grupo de trabalho que tem reuniões semanais para discutir um conjunto de 16 iniciativas de melhorias.
A primeira etapa do Projeto Bolt foi voltada para a redução de gastos administrativos. Segundo executivos brasileiros, a direção francesa tinha uma resistência histórica em fazer demissões. O número total de funcionários não diminuiu, pois a empresa contratou pessoal para abrir lojas, mas, na área administrativa, houve uma redução de 10%. Além disso, a empresa renegociou contratos de fornecimento de energia e limpeza, e conseguiu abater 15% do custo.
O segundo passo foi redefinir as estratégias para os diferentes formatos de lojas na tentativa de aumentar a participação de mercado da companhia e a rentabilidade. O Carrefour tinha lançado em 2014 a bandeira Express, que reúne as lojas de conveniência, de menor porte, mas em ritmo lento. Em dezembro de 2015, inaugurou 17 e apertou o passo no ano passado, abrindo mais 49 lojas. Em 2017, o plano é abrir 70 filiais, um ritmo acelerado para um grupo que passou quase quatro anos sem fazer nenhuma inauguração de loja no varejo.
A companhia estuda usar as filiais da marca Express como base para as compras de produtos alimentícios no site do Carrefour, um projeto previsto para o fim deste ano e o início do próximo. A entrega será feita pela unidade do bairro ou o consumidor poderá comprar e pagar pela internet e retirar os produtos na loja mais próxima de sua casa. Hoje, o site do Carrefour vende apenas produtos não alimentícios, como celulares, bicicletas e perfumes.
Lojas quentes
No caso dos hipermercados, um segmento em declínio em todo o mundo, o Carrefour decidiu reestruturar loja por loja. Algumas vão virar shopping. O primeiro no novo formato foi inaugurado em julho, na região dos Jardins, na zona oeste de São Paulo, e tem como alvo os clientes de alta renda. Além de um supermercado com uma adega com dezenas de rótulos de vinho e uísque e funcionários treinados para explicar sobre queijos e cortes nobres de carnes, o shopping tem restaurantes como Piselli e Outback e lojas como Any Any, de lingerie, e Camicado, de artigos domésticos.
A empresa também mudou a oferta de produtos — não há mais peixes congelados, apenas frescos —, a iluminação e a temperatura das lojas. “Brasileiros gostam de lojas mais quentes do que os europeus. Podem ir embora se sentem frio”, diz José Luis Gutierrez, que assumiu o posto de diretor-geral do Carrefour Brasil depois de dez anos em cargo semelhante na Espanha e em Portugal.
Para crescer no Norte e no Nordeste, a empresa incluiu produtos regionais — quase 80% das lojas ainda estão concentradas no Sudeste. Com a redução de custos e o aumento de vendas, o lucro operacional da companhia cresceu 42% de 2014 para 2016, chegando a 3,4 bilhões de reais.
A área imobiliária do Carrefour, a Property Division, identificou 40 lojas ou terrenos que podem mudar para tentar se tornar mais rentáveis. O shopping na região dos Jardins é um exemplo. Outro é o hipermercado na Marginal Pinheiros, na zona sul de São Paulo, que será transformado num complexo com torre de escritórios e de apartamentos. Planos parecidos estão sendo discutidos para Brasília, Goiânia e Belo Horizonte.
EXAME apurou que a ideia de transformar parte das lojas e terrenos em unidades da marca Supeco, espécie de atacarejo compacto, foi abandonada. “Abrimos duas lojas, que não deram o retorno esperado”, diz um executivo do Carrefour que não quer ser identificado.
Com o objetivo de elevar as vendas do Atacadão, o banco Carrefour passou a emitir cartões de crédito com a bandeira dessa loja no início do ano. Até então as vendas eram apenas em dinheiro ou cheque. O banco tem 6,5 bilhões de reais em ativos e uma rentabilidade de 17%, equivalente à do Itaú e maior do que as de Bradesco e Santander. O plano, agora, é usar a base de dados de clientes com cartões do banco Carrefour para mapear seu perfil de consumo e sugerir promoções.
Especialistas e executivos do setor de varejo atribuem parte do crescimento do Carrefour a problemas enfrentados pelo Pão de Açúcar. O Casino testou modelos que não tiveram sucesso, como a separação das vendas no site e nas lojas — as operações foram integradas em 2016. Além disso, as vendas nas lojas de conveniência e na bandeira Pão de Açúcar caíram. Recentemente, o grupo começou a implementar medidas para melhorar os resultados. Foi feita uma reavaliação das lojas e algumas mudaram de bandeira — por exemplo, de supermercado Extra para Pão de Açúcar. Outra medida em curso é a transformação de lojas Extra Hiper em Assaí, marca de “atacarejo” do Pão de Açúcar. “Estamos recuperando a confiança na capacidade de execução do Pão de Açúcar”, diz Guilherme Assis, analista do banco Brasil Plural.
Os resultados têm melhorado: no primeiro semestre, as vendas aumentaram 4% (o Carrefour cresceu 8% no período). As ações subiram 34% neste ano, depois de uma queda de 50% em 2015 e 2016. Outra vantagem do Pão de Açúcar é ter começado a expandir a rede de lojas de conveniência e a operar na internet há anos. Ou seja, a parte da aprendizagem já aconteceu, enquanto o Carrefour vai começar a fase de testes agora. “O Carrefour passa por um momento de transformação. Não vamos apenas fazer mais do mesmo”, disse Abilio Diniz na cerimônia de abertura do capital na B3 (novo nome da BM&F Bovespa).
Georges Plassat deixou o Carrefour em junho. O novo presidente, Alexandre Bompard, de 44 anos, foi escolhido a dedo pelos acionistas, depois de sua experiência na varejista de livros e eletrônicos Fnac. Abilio participou ativamente do processo: deu palpite na escolha da agência de seleção de executivos contratada e nas entrevistas de cada candidato.
EXAME apurou que o empresário defendia que o novo presidente viesse de fora do Carrefour e cedeu ao pedido da matriz para que fosse um executivo francês (foram avaliados candidatos de Estados Unidos, Alemanha e França). Também neste ano saiu de cena outro personagem: em agosto, Usain Bolt fez sua última competição esportiva. Para o Carrefour Brasil, a corrida está só começando.